6.6.12

prego à beira-rio

5 da tarde de sexta-feira e vagueio sem planos concretos para o anoitecer. Fiquei de emprestar um par de mãos a um amigo empreendedor lá mais para a noite. Gelados caseiros à sombra dos pastéis de belém é uma ideia ousada e por defeito ou deficiência apoio incondicionalmente a ousadia. Não hesitei portanto em disponibilizar-me para o que precisasse. Hoje cabe-me acartar caixas de gelados entre o camião e a câmara frigorífica, quem sabe o que amanhã me reserva.

Sem queixas contudo que isto de ter amigos é um luxo. Este em particular é esquivo e alheado mas tem o dom de aparecer em momentos críticos, sempre carregado com doses extra de energia e confiança. É uma daquelas pessoas com brilho natural. Vezes sem conta o vi mergulhar de cabeça para desafios arrepiantes e voltar à superfície com tons de veraneante em dia de céu azul. A verdade não é essa e bem sei o que lhe pesa mas tal é a marca dos guerreiros.

Mas divago. Ia falar sobre as minhas deambulações enquanto espero pelo serviço das 9. Eis-me em belém de t-shirt numa tarde de céu encoberto e vento cortante. Seduz-me a tentação do regresso a casa para o conforto do sofá mas a cabeça está quente e o rio chama por mim. Quando morava aqui nunca lhe dediquei especial atenção, sempre fui homem de mar e fugia para junto dele assim que podia. Agora faz-me falta o rio, talvez por simbolizar tudo aquilo que deixei para trás.

Enquanto atravesso a estrada paro por instantes no cimo da ponte para contemplar o movimento incessante do trânsito e imaginar-me reintegrado na dinâmica diária da cidade. Passei a ser um turista em casa própria e debato-me com a incapacidade de sentir a cidade como minha. Ao fim de uns minutos desisto e completo a travessia, desabando desconsolado sobre um dos bancos plantados na margem do rio para amparar peregrinos metropolitanos.

Aí me deixo ficar por longos momentos, extasiado perante tal cenário de indiferente melancolia. Assaltam-me então memórias antigas, de tempos em que a cidade era minha sem que eu o soubesse. O mais difícil nestas aventuras pelo passado é controlar o fluxo, fechar a torneira. Uma torrente de emoções toma conta de mim e transporta-me para um mundo distante mas tão parecido com este. Nele só eu sou diferente, só eu mudei.

Forço-me a esticar as pernas e fazer força. Tenho que andar. Mas o banco prende-me e puxa-me de volta para o lugar. Eu não pertenço mais aqui, digo-lhe. Ignora-me e continua. Que mais há-de fazer se tal é o seu propósito. O mesmo se aplica a mim então. Com um encontrão súbito levanto-me e afasto-me sem olhar para trás. Dirijo-me à ponte lá ao longe. Quero vê-la de perto e sentir a sua força.

Quando lá chego tudo faz mais sentido. O zumbido dos carros a passar pelo tabuleiro metálico, os comboios no tabuleiro inferior, o cristo-rei ao fundo. Consigo perceber novamente o conjunto da cidade, aos poucos volto a pensar como lisboeta. Assustado, retomo o passo em sentido contrário e acelero de regresso a belém. Não posso dar-me ao luxo de pensar nestas coisas agora, preciso de comer antes do embate da noite.

Quero um prego no prato e uma imperial. Desejos de emigrante habituado à força a sabores pobres e desinspirados. Mas não vou tolerar um ambiente sofisticado. Fujo portanto das ruas principais e procuro um beco qualquer onde se aloje uma tasca discreta. Não é difícil, esta é uma zona clássica onde o simples continua a ter lugar. Sento-me ao balcão e digo ao que venho.

5 minutos depois, o empregado coloca, de forma discreta e eficiente, a refeição à minha frente. Exactamente como a imaginei, sem que houvesse necessidade de explicar ou sequer trocar palavras excessivas com fosse quem fosse. No final paguei por tudo o que em Amesterdão pagaria apenas por cerveja e café. A beleza de estar em casa.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Nuno!

Não vale escreveres assim! É batota! Transportaste-me para tua companhia e colocaste nos meus olhos uma perspectiva de estrangeiro que estivesse a ver Lisboa pela 1ª vez...
Insisto, insisto e não desisto! Tens um dom, uma veia literária que não te larga. Quem tem o prazer da escrita aliado à sensibilidade literária,como tu,tem quase tudo para se lançar.
Há umas semanas atrás, quando fui durante duas 5ªs feiras consecutivas assistir àqueles encontros com escritores e filósofos no Museu da Electricidade, à beira -rio, tb. me sentei num desses bancos a olhar o rio, a ponte, os aviões... E fiquei pasmada com o bem estar e tranquilidade que me assaltaram. Há lugares mágicos que passam por nós todos os dias e a que não ligamos. E, de repente, sentes a sedução e emocionas-te. E ler.te foi uma enorme emoção. Beijinhos