22.3.20

o sacana do virus

Um dos poucos aspectos positivos desta pandemia é sermos, para muitos contra vontade própria, forçados a conviver durante largos períodos de tempo com aqueles que nos são mais próximos. Apesar das medidas de distanciamento recomendadas pelos especialistas de saúde, ainda nos é tolerada uma segregação acompanhada pelos elementos do agregado familiar. Não que tenha muito lógica quando se pensa sobre isso um pouco mais a sério, no final de contas cada um de nós é um sistema orgânico autónomo e infecções não olham a afectos. 

Estamos portanto confinados aos prazeres do lar e em grande medida limitados nesses deleites caseiros pelas mesmas circunstâncias que ditam a circunscrição. O mundo parece girar mais devagar nestes dias, há menos notícias, as poucas que há são alarmantes ou deprimentes, até a bolsa se tornou previsível pela negativa, e o entretenimento que habitualmente nos salva de nós próprios está reduzido a gravações de acontecimentos passados ou a toda uma panóplia de meios de comunicação com apelo predominante para as gerações mais recentes.

Incluo nesta última categoria jogos online, meios de partilha sociais, streaming de vídeo, transmissão de competições, desafios comunitários, realidade virtual e aumentada, vlogs de celebridades, reality tv e outras coisas desse estilo. Contava-me o Diogo que alguns dos amigos se dedicam agora a apostar em competições desportivas aleatórias em países distantes, sintoma evidente de uma dependência de novidade a qualquer custo. Já a Patrícia comentava que a incidência de divórcios na China disparou quando o estado de emergência foi levantado, à medida que os casais saem do seu purgatório privado e lhes é permitido exercer recriminação pelo sofrimento incutido durante o período de afastamento.

Dizia eu que um dos poucos aspectos positivos é a convivência íntima com os que mais amamos. Na vida dita normal, dias passam sem interacção significativa. As conversas tendem a reduzir-se a aspectos práticos da vida diária, agendas e calendários, ginástica horária para sobreviver à pressão dos incontáveis compromissos sociais e profissionais. Nos poucos momentos de descompressão ao final do dia, cada um se refugia no seu universo individual na ânsia de uns breves momentos de sossego e privacidade. A companhia de seres virtuais e relações unilaterais torna-se nesses momentos um alívio das expectativas irrealistas de desempenho sobre-humano com que nos confrontamos mutuamente no mundo do trabalho e da educação.

Eis que de repente somos obrigados a passar tempo uns com os outros. Muito mais tempo do que estamos habituados. Tempo que não estamos acostumados a ter. Ainda há tarefas e objectivos mas tudo parece tão mais distante. Quando a saúde está em jogo, tudo é relativizado. Sonhos de sucesso e abastança passam para segundo plano, projecções de longo prazo desmaterializam-se e ganham contornos de ridículo, tudo o que resta é o agora. Finalmente somos confrontados com a incontornável realidade para além de memória e imaginação, a medida exacta da nossa existência fraccional. E entendemos que só as relações importam.