7.6.12

conversão

Ícone máximo do movimento ecológico global e referência absoluta no estabelecimento de políticas energéticas sustentáveis, a bicicleta é também um dos traços mais marcantes da vida em sociedade aqui na Holanda. Se a colossal quantidade de veículos não motorizados em circulação impressiona à primeira vista, a verdadeira causa de espanto a longo prazo é a atitude colectiva em relação à mesma.

Apesar de já contar alguns anos disto, ainda deixo escapar um sorriso à vista de um novato incauto surpreendido por uma reprimenda furiosa ao tomar a pista das bicicletas por passeio. Ainda me lembro de me sentir igualmente perdido nos primeiros tempos, habituado à simples distinção dual entre carros e o resto e quase atropelado em diversas ocasiões por ciclistas indignados com a minha falta de atenção. Hoje as tais faixas reservadas aparecem-me instantaneamente com a nitidez de uma pista de descolagem de um aeroporto internacional iluminada à noite.

Os números só por si são estonteantes. Fiz uma pesquisa rápida na internet e estimativas actuais apontam para algo como 18 milhões de bicicletas na Holanda, ou seja uma média de 1,1 por pessoa. Ainda que todos - incluindo bebés, idosos, doentes, etc - efectivamente se deslocassem em bicicleta, sobrariam 2 milhões sem uso. Isto não surpreende minimamente quem as vê por aí atiradas, em estado avançado de degradação, encostadas nos passeios a bloquear o caminho de transeuntes, penduradas de pontes pelas correntes ou mergulhadas na água dos canais.

Estou convencido que o sistema, bem concebido na sua origem, se perverteu pela prática. Dito assim soa redundante, quase chavão, pois tal é a natureza de todos os sistemas. O que pretendia dizer é que um bem puro, inquestionável - um meio de transporte rápido, limpo e saudável - tem uma faceta negativa menos visível decorrente da mais elementar natureza humana. Como muitos antes de mim já argumentaram, o ser humano não sabe conviver com a ordem, precisa do caos para entender o mundo em redor.

Estou convencido que as cidades holandesas já se debatem com um problema a este nível. Por mais que os trabalhadores das câmaras municipais abatam veículos que evidenciam falta de manutenção prolongada, o ritmo da chegada de unidades novas ao mercado é estarrecedor e mina qualquer tentativa de planeamento urbano. Promoveram as bicicletas como alternativa ao carro, pergunto-me se não está na altura de refrear os ânimos, impondo regras mais apertadas à circulação - os atropelos às mais elementares regras de trânsito são contínuos - e multando o estacionamento indevido.

Se algo não for feito os passeios tornar-se-ão rapidamente vias alargadas de bicicletas, privando os pedestres de espaço e as ruas comerciais e habitacionais de uma fonte essencial de vida. Percebo que para os holandeses, nascidos e criados ao ritmo das pedaladas, caminhar seja um meio arcaico de deslocação - noto a incompreensão nas suas vozes quando comento que fui a pé de casa para o trabalho num percurso de meia hora - mas a meu ver, ruas sem pedestres são tristonhas e ocas.

De qualquer forma, eu ciclista convertido me confesso. Demorei uns anos a admitir mas não há como escapar à conveniência.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Nuno!
Sempre que vou a Amsterdão planeio antecipadamente que será dessa vez que pedirei à Patrícia para me emprestar a sua bicicleta. Ainda não concretizei esse desejo. Sei que vou adorar. No Porto Santo era o nosso transporte preferido até porque um dos únicos disponível. Há 40 anos só havia uma camioneta da carreira, como lhe chamávamos. Infelizmente nos dias de hoje, os madeirenses acartam de barco os seus carros, para se deslocarem durante uns dias de férias,nestes míseros quilómetros. Poluem o ambiente e rebentam com o sossego. Mas, Nuno, sim! Vivam as bicicletas! Beijinhos