14.6.12

deriva sociológica

Ouvi falar de um mundo no qual os pais assumem por inteiro o seu estatuto de geração dominante e remetem os filhos para uma posição secundária. Consta que ali a educação - e a escola em particular - é vista como um privilégio concedido pela sociedade aos seus membros mais novos. A lógica societária, de cariz marcadamente economicista, é simples e consiste em trocar produção presente - aquilo que as crianças poderiam (e que em tempos costumavam) gerar com o seu trabalho - pelo produto de altíssimo valor acrescentado que entregam enquanto adultos com formação. A diferença de produtividade é de tal forma assombrosa que permite compensar largamente o investimento feito no sistema educativo e as perdas decorrentes da ausência de rendimento durante os anos de escolaridade.

No tal universo paralelo, a sociedade e todos quantos existiam antes da criança aparecer são prioritários. Cabe aos novatos perceber as circunstâncias em que se encontram e conquistar o seu lugar no mundo. Para que isso seja possível, têm não só que respeitar os mais velhos e aprender com eles mas também trabalhar arduamente para justificar a aposta feita em si ao invés do próximo. Os miúdos - parte não consultada no processo pela reconhecida imaturidade para gerir o volume de informação disponível, filtrar as inúmeras opções que se lhes apresentam e tomar decisões com alcance de longo prazo - são encaminhados pela envolvente contextual para a dedicação ao estudo com a perspectiva de entrar no mercado de trabalho com qualificações que lhes permitam perpetuar o negócio familiar ou assegurar uma profissão com relevo na vida em sociedade.

Nada disto é a meu ver um recuo no tempo ou uma regressão na escala evolutiva. Esta sociedade dedica absoluto respeito ao imenso potencial do jovem e protecção incondicional à sua vulnerabilidade. Em paralelo existe contudo a percepção que a criança não é um produto acabado. É antes um adulto em formação, com uma compreensão incompleta e até difusa do mundo que a rodeia. Entregar-lhe a chave do seu futuro é meio caminho andado para um adulto confuso e desajustado. O fundamento para a realização pessoal está no sentido de pertença e utilidade, não na satisfação compulsiva de impulsos e vontades. É precisamente neste ponto que reside a principal responsabilidade dos pais enquanto educadores - ao apontar um caminho delimitam as fronteiras e protegem os filhos da desorientação.

Comparo este modelo com o vigente no nosso mundo dito desenvolvido, cada vez mais orientado para a secundarização do adulto em relação à criança ou adolescente. Obcecados com a juventude, receosos da redundância enquanto equivalente cultural da morte, petrificados pela inevitabilidade do afastamento dos filhos, abstemo-nos do papel de força motriz da sociedade e da família e depositamos nas mãos dos pequenos a esmagadora responsabilidade pelo seu próprio destino. Doutorados nas mais avançadas teorias pedagógicas, democratizadas nos media por psicólogos com talento ímpar para a comunicação, procuramos sacar à força o id das criancinhas, para que explorem desde tenra idade as suas paixões mais profundas e consigam com isso desenhar um futuro pleno de preenchimento.

- O que queres ser quando fores grande?

- Bailarina, cantora, jogador de futebol...

Em vez dos condescendentes sorriso e festa na cabeça, clássicos da infância e referências ancestrais da resposta dos adultos a manifestações de interesse por parte dos mais pequenos, reagimos solícitos.

- Então vamos inscrever-te numas aulinhas de música. Queres?

Encolhem os ombros e deixam-se arrastar, pensando com isso agradar aos pais que tanto empenho aparentam pôr em mais aquela actividade. Ah, como lhes apetecia ficar sossegados em casa ou no parque a brincar descontraidamente com a areia.

Cientes da importância da condescendência, respondemos então a baboseiras e dislates com tolerância e comedimento, poupando os nossos mais-que-tudo à temida palmada ou ao profiláctico ralhete. A felicidade dos meninos enquanto imperativo categórico pois da sua depende a nossa. A violência física e psicológica estigmatizada ao ponto da caricatura. Já não chega propiciarmos-lhes comida, tecto, protecção e educação. Hoje os pais têm que garantir também todo o resto que antes era deixado à iniciativa do próprio - integração social, experiências gratificantes e enriquecedoras, competências extra-curriculares e toda uma panóplia de elementos alegadamente essenciais ao crescimento equilibrado das frágeis criaturas.

A responsabilidade do sucesso dos pequenos na vida passou por inteiro para as mãos dos pais. Se para isso o adulto tiver que se anular enquanto indivíduo, assim seja.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Nuno!

Sobre o Lazer e a Ocupação de tempos Livres... Este é que é o cerne da questão! Na sociedade contemporânea a ideia de que só o trabalho dignifica o Homem e que a preguiça é a mãe de todos os vícios ainda predomina e isso reflecte-se na maneira como os pais encaram o tempo livre e de lazer dos filhos.
Disse um estudioso da matéria que « a criança é como uma planta. E uma planta sem sol não dá flores.Uma criança, se não brinca, murcha.» O brincar permite à criança apropriar-se da realidade imediata, desenvolver a imaginação, os afectos, as competências cognitivas e interactivas, permitindo~lhe a vivência de diferentes papéis. A criança precisa de tempo para brincar. E é preciso dar-lhe tempo, espaço e recursos adequados para que possa escolher e desenvolver interesses individuais e de grupo.
Isto é Lazer! A OTL é outra coisa. Quando é que as actividades extra-curriculares são demais? Mediante uma avaliação das oportunidades que a criança tem para não fazer nada! O tempo verdadeiramente livre é importante para a promoção da saúde e bem estar. Quando não há tempo para brincar, então as actividades são demais ( para além de escravizarem os pais!).
O «Petiscar de Actividades», i. é., ter várias actividades em simultâneo, não contribui para a sua maturidade e pode, sim, contribuir para a diminuição do rendimento escolar, uma vez que a criança se encontra cansada física e mentalmente.
Há ainda que considerar quem escolhe essas actividades, se a própria criançaa, se os pais...
E nós, filho, como é que foi??? Se calhar tiveram demasiadas actividades e faltou algum tempo para a brincadeira. E eu levava o tempo contado aos minutos...O que achas???
Nuno, lê e não publiques estas minhas respostas no teu blogue, pois são testamentos suscitados pelas tuas reflexões interessantes. Beijinhos