18.6.12

cumplicidades

Domingo à tarde e nós por aí. Pouco interessa onde, só me lembro de estarmos juntos. Vozes singulares em cacofonia, risos espontâneos de almas soltas, gritos desafiadores e logo repreendidos. Num etéreo jogo de escondidas, as nuvens deitam-se deliciadas de barriga para cima a gozar o brilhante sol de junho e reservam para nós as costas carregadas de cinzento escuro, em deliberada ameaça de tempestade latente. Cá de baixo maldizemo-las impotentes e arrepiamos caminho, mal disfarçando o incómodo. Nada como os fenómenos naturais evidencia tão claramente a nossa pequenez. Qualquer plano que façamos, por mais previdente e detalhado, esboroa em ridículo perante a inclemente vontade atmosférica.

- De facto, só o tempo para nos fazer sentir tão irrelevantes - solto para o ar, na esperança que alguém apanhe a deixa.

À luz do óbvio insucesso da iniciativa, recrimino-me pela frase batida e concentro-me no prazer inortodoxo da primeira pinga que me cai no nariz. O arrepio do molhado aporta um toque de aspereza a uma existência de resto subtil e obriga ao reconhecimento da presença em redor. Há uma vaga brisa marítima no ar, que por um instante me transporta até casa - nada de concreto, algo bem profundo, um lar primordial do qual não tenho qualquer recordação activa. Aí sou pleno, não caibo nesta concha que habitualmente me define e preencho o todo à minha volta. Viajo sem tempo ou espaço, num limbo inenarrável que ingenuamente classifico de nada. Até que o cheiro a lodo e metal apanhado pelo vento à passagem pelo cais me traz de volta à realidade e me define enquanto sólido deste sítio onde escolho estar.

- Pai, tenho frio - dispara a pequenota.
- Anda cá, encosta-te a mim. E filho, por favor fecha o casaco...
- Mas estou cheio de calor!
- Fecha o casaco, sentencia a mãe.

Mais um dia se esgota sem qualquer acontecimento de relevo. Paradoxalmente, assalta-me um universo de pequenas sensações recordadas que me aquece ao cair da noite. Não preciso de fotografias ou filmes, guardo tudo o que preciso dentro de mim. Imagens antigas são meros auxiliares de referenciação, índices da memória. Mil vezes prefiro recordações imprecisas e desconexas mas cheias de vida do que um catálogo com infinitos posters de gente perdida no tempo, reflexos pálidos de pessoas que deixámos de ser ou que em tempos nos foram tão queridas. Imprópria que seja, essa é a minha escolha. Não a imponho contudo, e observo deliciado o entusiasmo com que os pequenos revêem as fotos do dia e riem um riso pateta das caretas e palhaçadas com que um e outro nos brindaram ao longo da jornada.

Felicidade assim não tem lugar fixo. Paira livre em permamente desassossego, ao alcance apenas de quem a não quiser prender. Qual fada de roupagem translúcida, flutua ao sabor do desejo, revela-se por instantes e desvanece ao primeiro sinal de definição. Borboleta de azul celeste tingido, saltita por impulsos, pousa por vontade própria e morre quando capturada. Emoldurada perde instantaneamente o brilho e deixa no coleccionador não mais do que uma memória falsificada, um substituto artificial de tudo quanto poderia ter proporcionado se tivesse sido apreciada por aquilo que estava naturalmente disposta a dar. Esta é a natureza das coisas de valor. Só o inominável em nós sabe valorizá-las. O mais difícil é aceitar esta ordem singular do mundo, deixar o rio seguir o seu curso sem interferir, espremer o sumo e bebê-lo deliciado sem pensar em como replicar a sensação. Ao querer aprisionar tais bençãos subjugamo-las, destruímo-las.

Nuno

2 comentários:

Berta disse...

Filho Nuno!

Leio e releio... É autêntica prosa poética, pois claro!
Foi assim que Eugénio de Andrade falou de poesia:

A poesia não vai

A poesia não vai à Missa,
não obedece ao sino da paróquia.

... a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade,
A poesia adora
andar descalça nas areias de verão.

Nuno, pelo menos no vosso blogue vais soltando o animal...

Dei por mim a sorrir com o vosso diálogo com o Diogo.«Filho, por favor fecha o casaco...» E o Diogo «Mas estou cheio de calor!». «Fecha o casaco», sentencia a mãe. E ele, fechou?
«Encosta-te a mim» , como canta e tão bem Jorge Palma, foi a forma terna de aqueceres a Lindinha quando se queixou do frio.
E é deste modo que nos permites partilhar bocadinhos da vida dos nossos netos, preciosos, com ou sem fotografias. Dizes preferir recordações imprecisas e desconexas a fotos que depois não passarão de reflexos pálidos das pessoas que fomos. Quando me casei, dispensei as fotografias para o album que nunca montei. Muito mais tarde lamentei a opção, da mesma forma que lamento a falta de fotos da minha primeira infância. Não sei como era em bebé e ainda bem que os nossos pequenotes poderão deleitar-se com as incontáveis fotos que lhes tiraram desde que nasceram...

Tanta gente definiu já o que é a felicidade. A tua versão é... poética? Tambem, para além de genuína, pessoal. Vai escrevendo que eu vou repetindo: É isso mesmo!
Beijinhos para os 4. xxxx

CDA disse...

Quando é que acabas o livro, ou já estás a preparar o segundo volume?

Olha que, editores, não te hão-de faltar.

Abr