Filhão,
Fazes-me rir
convulsivamente. Pouca gente consegue isso, sobretudo com tão pouco esforço. Contigo
basta lembrar-me das parvoíces que congeminas pelo prazer puro da palhaçada. És
a estátua sensual no meio da sala, o body
builder do six pack, o
especialista em inglês falado com sotaque francês, a sirene humana que tira a
tua mãe do sério. Provocas a tua irmã quando tem a boca cheia de água para a
fazer rebentar a rir e molhar a toalha do jantar. Gozas com tudo e todos sem
piedade, humor ácido quase cruel embora irreflectido, sem verdadeira intenção
de magoar. Esticas a corda até partir e te ofenderes com a reacção. Tens 15
anos, quem nessa idade pensa nos outros.
Tufão Diogo,
assim te chamamos tantas vezes. Por onde quer que passes deixas um rasto de
destruição inconfundível. Arrastas no teu caminho uma quantidade de objectos,
entre os quais bolas, livros, aparelhos electrónicos, fios eléctricos, comida semi-consumida
ou por encetar, onde aterram ficam até alguém te forçar a arrumar sob veemente
protesto. Cascas de fruta na casa-de-banho, bem acompanhadas por inúmeras peças
de roupa torcidas e amontoadas durante dias nos rebordos da banheira, sofá e
mesa de apoio em serviço de prateleira, bolas espalhadas pela casa num trilho
evidenciado pelas marcas nas paredes brancas, ténis de râguebi elameados no
chão da sala apesar dos insistentes pedidos para os tirares assim que entras em
casa. Qualquer aparelho electrónico que te passe pelas mãos é devolvido com
bateria descarregada e uma camada viscosa de gordura ressequida e açúcar
caramelizado.
Também te
chamamos outros nomes. Colosso, assombro, campeão, apenas alguns dos muitos que
espelham a tua nobreza de carácter e a espantosa facilidade com que assimilas
novos conceitos e dominas diferentes competências. Quando eras minorquita,
bastava ouvires uma música ou história uma vez para a decorares. Desde aí e ao
longo de toda a tua vida tens mantido uma regularidade monstruosa de absorção
insaciável de tudo o que te rodeia, sobrevoando com ligeireza as múltiplas
facetas da realidade e pousando ao de leve em cada uma, até que a brisa te
empurre ou atraia sem remorso para a próxima. Física e matemática intercalam
afinadamente com rugby e boxe, numa alternância de agilidades ao alcance apenas
daqueles unicórnios de mente definitivamente aberta ao mundo como lhes é
apresentado.
Assim que nasceste
anunciaste ao que vinhas e viraste a nossa vida do avesso. Como todos os casais
ingénuos que se preparam para a primeira aventura no mundo da paterinade,
tínhamos toda uma série de teorias educativas e certezas sobre a melhor forma
de educar uma criança. Lemos livros, falámos com especialistas, ouvimos
conselhos de pessoas mais experientes, embora convencidos que por intuição ou
sabedoria auto-adquirida já tínhamos as respostas todas e quando chegasses
saberíamos naturalmente o que fazer. Olhando agora para trás, é fácil admitir
que não podíamos estar mais enganados. Ouvíamos falar de bebés tranquilos, que
dormiam logo desde o princípio 5 ou 6 horas de seguida, acordavam apenas para
comer ou mudar a fralda e voltavam a adormercer, pais tão enlevados pela
experiência que mal podiam esperar para avançar para o segundo filho. Bastou um
par de dias para percebermos que o nosso caso seria diferente.
Dormíamos no
máximo 4 horas por noite, espaçadas e interrompidas por sessões de choro de 2
horas sem intervalo ou explicação. Cólicas, fome, pesadelos, ansiedade, mimo,
frio, calor, todas as razões pareciam igualmente boas sem que qualquer uma se
destacasse ou convencesse. Quantas horas passámos de pé junto ao teu berço, a
segurar a chupeta e dar-te palmaditas na fralda, a passear pela casa contigo ao
colo, em suave ou acelerado baloiçar na cadeira de vime, a cantar ou contar
histórias, e tu sempre a chorar. Ao fim de umas semanas começaram as dores
constantes na coluna, no pescoço, nos braços, pois já na altura tinhas
constituição de atleta. Depois de 3-4 meses os efeitos da ausência de sono eram
notórios na disposição geral, no desempenho profissional, na estabilidade
emocional. Isso e a decisão de parar de fumar quando tinhas 5 meses valeram-me
ataques de pânico e o que hoje entendo ter sido um burnout que ficou por identificar e que me conduziu a largar um
emprego para-a-vida-como-muitos-me-diziam que tinha na Brisa.
Conto isto tudo
por precisão histórica e por genuíno gosto de reviver estes momentos na minha
mente. Memórias, escolhas e gostos compõem a personalidade e contextualizam a
nossa percepção da realidade. Esta história é a nossa, com tantos altos e
baixos, sucessos modestos e vergonhosas derrotas, infinitas conversas e cheiros
e sons, um mar translúcido e profundo de afectos sinceros, acima de tudo uma
harmonia eterna alicerçada na união inegociável entre os teus pais que te contaminou
e que até hoje se infiltra no próprio ar que todos respiramos. Trago estas
recordações à luz do dia porque me orgulho de cada uma delas, porque sei que
com cada uma a minha vida se agigantou e eu signifiquei tanto mais. Tu meu
filho és um tesouro para mim e assim te tratei desde que te vi.
Esta parte que se
segue estou certo que ouviste mil vezes ou mais. Nasceste por cesariana, eras
grande demais para o método natural e estavas mal colocado no útero. Esperámos
o dia inteiro no hospital sem sucesso para que se desse a dilatação. Ao final
da tarde a médica finalmente cedeu e levou-nos para a sala de operações. Sim,
fomos ambos para a sala pois eu estive lá o tempo todo de mão dada com a mãe.
Não conseguia ver os detalhes, eles sabiamente bloquearam-me a vista para
evitar acidentes, mas ainda assim tive direito a assistir a algumas cenas
escabrosas para mentes pouco habituadas e impressionáveis. Lembro-me em
particular do momento em que a médica se dirigiu a ti, levando-me a acreditar
que já estarias fora do corpo da mãe e a levantar a cabeça para não perder tal
ocasião, percebendo instantaneamente que me tinha precipitado quando a vi
enfiar as duas mãos algures no ventre e puxar por ti com visível esforço
físico. Admito que foi impressionante, o grafismo cru das imagens tão reais a
passar ali mesmo à minha frente, gestos mecanizados enquanto mexiam nas
entranhas da mãe, sons da nossa faceta interior literal que só fisiologistas se
habituam a conhecer, cheiros biológicos e químicos numa mistura quase agoniante
para o nariz virgem, penso contudo que não atraiçôo a verdade do acontecimento se
disser que aguentei firme para assistir a um milagre digno de qualquer
religião.
Saíste e por um
instante parecia impossível. Um ser novo, criado a partir de matéria tão antiga
como o universo e genes meus, a alquimia da vida a decorrer ao alcance da minha
mão. Coberto de sangue, autêntico, um sopro de realidade primordial nas minhas
narinas,. Eras perfeito, eras meu, naquele preciso segundo tão meu, um rapagão com
tudo no sítio, depois de meses de preocupação ali estavas concreto e corpóreo e
inteiro, a precisar de um pai e só aí entendi que nada sabia, que era apenas um
asno com manias e tu, vindo do nada e incorporado assim como por magia, terias
tanto para me ensinar. Levaram-te para a pesagem, limparam-te com eficiência e
cuidado, vestiram-te e levaram-te para o berçário. Lá fora esperavam os avós,
saí e celebrámos em família o primeiro nascimento da nova geração. Daí a pouco
a mãe saía do recobro para o quarto e tu vieste ter connosco. Aí se instalou na minha mente o
pânico, aligeirado pelo alívio de estar no hospital e haver gente que percebia do assunto, eras
tão pequeno como podias resistir ao mundo, eu como havia de te proteger se nada
sabia, o que faria se não estivesses bem.
Aos poucos a
calma regressou, acostumei-me à ideia de ir descobrindo à medida, de aprender
contigo. Enraízada estava contudo a determinação de ser um super pai, daqueles
que as histórias acompanham sem cuidado para com subtilezas. Não ia poupar
esforços para te educar, eras um adulto em formação e assim estava resolvido a
tratar-te desde o princípio. A infância é um estado e a minha principal função
enquanto pai é preparar-te para a idade adulta, para saberes tomar decisões e
cuidar de ti quando te sentires pronto ou eu já não tiver essa capacidade. Essa
minha (e nossa) abordagem criou alguma tensão entre a família mais próxima, em
grande parte porque aos vinte e tais não soubemos ou quisemos fazer concessões.
A tua mãe e eu temos ambos veias radicais, manifestas em estirpes diferentes
mas complementares, e alimentamo-nos mutuamente nessa tendência. Que se lixe o
mundo dizíamos, cada um que faça o que quiser e não se intrometa. À minha
maneira, sem compromissos ou negociações, a lembrar a canção dos Xutos. Se
alguma vez te questionaste, já ficas a saber de onde vem essa tua mania de
remar contra a corrente por pura diversão.
Que iludidos
andávamos nesse teu princípio de vida. Julgávamo-nos independentes e autónomos,
adultos maduros senhores da sua vida. A verdade é que a vida nos ía fácil.
Embora cientes da felicidade em que estávamos mergulhados, não nos apercebíamos
que a nossa existência em tudo dependia da boa vontade e apoio de uma
quantidade de gente que nos aturava e perdoava os excessos. Só acordámos para
isso em 2007, quando mudámos para a Holanda e toda a rede de apoio evaporou num
sopro. A partir daí éramos só nós, tínhamos que ser tudo para ti e para a tua
irmã enquanto lutávamos para ganhar posição no trabalho e nos integrar numa
sociedade estranha e indiferente às necessidades individuais. Quantas vezes
lamentei a via que tomámos e desejei poder voltar atrás, desfazer decisões
erradas minhas que nos levaram a não ter outra opção que não fosse partir.
Não sei se te
lembras das infinitas vezes que os teus avós iam visitar-te quando ainda morávamos
em Lisboa, quase todos os dias a seguir à escola. Primeiro no infantário em
Telheiras, já não me lembro do nome, e mais tarde na escolita em Santos junto
ao parlamento cujo nome também me escapa. A paciência infinita com que vinham
no final dos seus dias de afazeres para passar uma horinha a brincar contigo
antes da hora do banho. Sobretudo as duas avós, babadas com o primeiro neto da
família. A bó, a bó, dizias tu continuamente. Sempre foste fanático por bolas
de todos os tipos e feitios. E lá estávamos todos em casa, no terraço em
Benfica, no jardim no Magoito, nos parques em Lisboa, na praia no Algarve, onde
quer que houvesse um espacito e um minuto, a jogar à bola contigo. Tiveste azar
no futebol, saíste a mim e os pés às vezes atrapalham na tradução de jogadas
geniais imaginadas em movimentos efectivos. Descobriste entretanto a baliza,
onde és considerado uma estrela entre os colegas da escola, e onde também eu
brilhei por exclusão de partes quando tinha a tua idade.
Acrescentaste ao
futebol o rugby, que nós sempre imaginámos ser o desporto ideal para ti. Desde
minorca adoravas correr, atirar e apanhar bolas. Vezes sem conta comentámos
entre nós que havias de gostar de rugby. Tínhamos no entanto uma imagem algo
negativa do desporto, baseada no que conhecíamos de colegas de escola e das
transmissões televisivas. Que era só pancadaria, brutos em campo e fora dele,
não queríamos que te tornasses um daqueles rapazes que tínhamos conhecido em
tempos e aspirávamos a mais elevadas aplicações para a tua refinada
inteligência. Actividade física claro enquanto passatempo, mente sã em corpo
são, a tal dualidade entre espírito e físico a que a nossa imaginação nos
remete. Nada mais que isso contudo, intelectuais que nos achamos jamais
poderiam deixar os filhos abandonar a via do raciocínio e do método.
Muitos anos mais
tarde cedemos à inevitabilidade e levámos-te ao clube de rugby de Amesterdão
para uma prova. Foi amor à primeira vista e a todos nos foi finalmente dada a entender
a essência de um desporto nobre com valores incondicionais. Ao contrário do futebol,
que das origens humildes com bolas de trapos e braços abertos ao mais ingénuo entusiasta
se metamorfoseou numa linha de montagem de ídolos com pés de barro para
entretenimento boçal das massas e enriquecimento indevido de artistas de outras
manhas, o rugby conseguiu conservar uma certa autenticidade por via de
princípios rígidos e inegociáveis transmitidos culturalmente pelo próprios
actores do jogo. Simulações, fitas, dramas, faltas de respeito, são não só
irredutivelmente punidos por quem de direito mas sobretudo corrigidos no seio
dos próprios jogadores. Como é costume dizer, um jogo de arruaceiros praticado
por cavalheiros.
Passados 4 anos,
lá continuas apesar das lesões mais ou menos graves que te foi causando. Esta
última no joelho tem sido difícil de aceitar e resolver, até porque surgiu do
nada e nenhum dos médicos foi durante meses capaz de entender a génese do
problema. Com isso perdeste uma época inteira, para grande pena tua pois teria
sido a tua oportunidade de consagração enquanto fly half de uma equipa com espírito ganhador e solidário. Desejo
com todas as minhas forças que o joelho te permita voltar a praticar esta
actividade que tanta satisfação te traz e que em Setembro consigas integrar-te por
inteiro na nova equipa em Amstelveen.
15 anos quase 16 já
lá vão, estás à beira da tal idade adulta para a qual sempre procurámos
preparar-te. És um ser magnífico e eu um admirador assumido. Por vezes
confundes-me, tenho dificuldade em entender as tuas escolhas. Deixar os filhos
crescer é o maior desafio enquanto pai. Respeitar as tuas escolhas, aceitar que
não tenho as respostas todas e que a tua vida passou a ser demasiado grande
para caber na minha. Tens ideias bem concretas do que queres e confio
integralmente em ti. Estou convicto que te passámos valores essenciais, que
vais ser uma pessoa de bem. À tua maneira. Mais não posso fazer a não ser estar
lá para ti quando precisares.
Tenho um enorme orgulho em ser teu pai.
Nuno