8.6.12

desconhecido

Eis-me aqui de novo, com esta tralha toda para enfiar na mala. Conheço de cor a lista por ordem de prioridade: artigos de higiene, roupa para as reuniões e depois o resto, variável em função do que se espera que aconteça. O mais incrível é que a realidade corresponde de facto às expectativas e pouco se encontra de inesperado nestas pseudoaventuras. Vez após vez tudo se repete, sem que o tempo ou o espaço pareçam ter qualquer capacidade de intervenção.

Concentro-me na tarefa em mãos. Pasta de dentes, botões de punho, gravatas com significado... O pânico de esquecer alguma coisa essencial e dar por mim no dia da reunião em condições menos do que perfeitas. O segredo do sucesso nestas missões é a preparação. Todos os detalhes contam, a primeira impressão é eterna e grande parte da ilusão está na apresentação. Pelo menos foi isso que sempre me ensinaram. Diria antes pregaram, como parte dessa cínica lavagem cerebral a que se sujeitam todos quantos se entregam ingenuamente ao mundo corporativo.

Fecho a mala a cadeado, guardo na mochila os artigos essenciais para o caso de extravio de bagagem - pequenas manhas de quem desperdiça demasiado tempo em aviões e aeroportos - e chamo o taxi. Tudo muito eficiente, optimizado por inúmeros binómios tentativa-erro. Se me aplicar consigo começar a fazer a mala uma hora antes da partida e ainda chegar à porta de embarque sem pressas. Só não consigo deixar de questionar o valor de tais competências para a minha afirmação enquanto indivíduo. Tirem-me estas rotinas, obriguem-me a estar quieto, e deixo de fazer sentido.

O movimento importa só por si. O destino, por mais pequeno e imediato que seja, dá-nos propósito e preenche ilusoriamente a nossa necessidade de significado. Por isso estrebuchamos freneticamente - viajamos compulsivamente só para descobrir que regressamos iguais, esgotamos dias preciosos em compras inúteis, esperamos ansiosamente por eventos aleatórios e resignamo-nos a relações fictícias em redes sociais - só para não sentir o peso do aqui e agora. O rato na gaiola corre satisfeito na roda enquanto o gato observa tranquilo.

Saio do taxi e entro no aeroporto directo à portada dos passageiros frequentes. Não olho para ninguém, economizo palavras e gestos, procuro passar incólume pelo abjecto processo de controlo. Graças aos truques e artimanhas do costume estou do outro lado em 5 minutos. O lounge perdeu exclusividade e não passa agora de um incómodo disfarçado de requinte. Refugio-me no canto de um café perto da porta de embarque e espero pela última chamada - era o que faltava ver-me preso na manga de acesso entre dezenas de outros passageiros só porque o pessoal do aeroporto quer tudo arrumadinho para poder tratar do próximo vôo.

No princípio incomodava-me a perspectiva de alguém se sentar no meu lugar, de não ter espaço de arrumação para a mochila ou de chamarem o meu nome. Entretanto fui perdendo o pudor - se ficar para o fim não espero na fila, tenho mais hipóteses de ser promovido para a executiva, os assentos estão nominalmente reservados e as hospedeiras arranjam sempre espaço para a bagagem de mão. Agora deixei de perceber as pessoas que fazem fila para entrar, como se com isso conseguissem partir mais depressa ou arranjar um lugar melhor.

Aterrado e estacionado o avião, observo agora a segunda parte do puzzle: por que razão se levantam os passageiros com tanta pressa no final de um vôo? Consigo perceber que queiram esticar as pernas ou aliviar a tensão depois de tanto tempo fechados num túnel volante. Só não entendo o acotovelamento para tirar as malas e para se dirigir para a saída, sobretudo para quem ainda tem que esperar um bom tempo pela bagagem de porão - isto quando não há controlo de passaporte.

No aeroporto do destino entrego-me pacificamente à sorte. Cada um é diferente do anterior, as regras são dinâmicas e os locais têm especial prazer em atormentar estrangeiros com manias. Por isso procuro incluir no meu planeamento de viagem tempo suficiente para procedimentos de entrada e de recolha de bagagens. Uma vez chegado, adopto um low profile, respondo a quaisquer perguntas com tranquilidade e afasto-me com veemência e sem contemplações de todas as propostas que não entendo. Antes passar por nabo do que cair nas mãos de vigaristas.

Chegado ao hotel, a rotina inverte-se: tirar da mala, engavetar, pendurar. Não sou de forma alguma maníaco das arrumações mas dita a experiência que os 3 minutos que isso me custa à chegada poupam-me muitos mais de preparação para a reunião. Quanto ao resto da estada, apenas as guerras do costume sem surpresas de maior. No final completo o ciclo com o regresso, no qual tudo se passa na exacta medida inversa da vinda.

Até ao próximo vôo, num perpétuo movimento de partidas para lugar nenhum.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Filho Nuno!

Esse teu olhar silencioso e observador captou, em câmara lenta e em pormenor, todo o ritual necessário para uma simples deslocação. E pergunto-me, para onde terás viajado desta vez?!?
Enquanto ia lendo as tuas palavras, com muita curiosidade para ver as que se seguiam, lembrei-me de um filme que vi, «The Accidental Tourist»,de 1988, de Lawrence Kasdan, com William Hurt e Kathleen Turner no elenco, e que foi baseado numa obra de 1941, de Anne Tyler, escritora americana, autora de vários romances e deste que era uma espécie de Roteiro.
Um escritor pode escrever sobre qualquer tema, até um roteiro...
Ao ler-te, foi como se o que escreveste estivesse a passar-se comigo, mas obrigando-me a ver muitos pequenos pormenores a que habitualmente o comum dos mortais não dá muita atenção ou nem repara.
Só por curiosidade, «O rato na gaiola corre satisfeito na roda, enquanto o gato observa tranquilo»! O comum dos mortais é o rato e tu és o gato, certo?!?
E já agora, para onde foste viajar?Beijinhos. Boa viagem.