12.6.12

a crise dos trinta e tais

`Papá, já sei contar até mais de mil em português. Queres ver? Um, dois, três...`, conta a kiki sentada a meu lado no sofá da sala. Imerso entre as almofadas e absorto na leitura de uma notícia aleatória de um qualquer jornal digital, endireito-me sobressaltado quando a ouço correr os trintas - trinta e um, trinta e dois, trinta e três... - e martelar com leviandade o penoso número em que se cifra a minha idade actual. Se ela sequer o disse não posso garantir mas posso jurar que o ouvi com clareza. Com o choque deixei sem querer escorregar o portátil, até este se estatelar de ecrã para baixo nas pranchas do soalho, soltando em jeito de recriminação um queixume seco de plástico abandonado.

- Filha, já podes saltar de dez em dez, não vale a pena contar todas as unidades. Aliás, o pai sabe que tu sabes, não podes contar baixinho na tua cabeça?

Anui sem perceber a razão do pedido. Há-de pensar que é o ruído que me incomoda. Nunca poderia imaginar o paralelismo subconsciente que desenhei entre a sua contagem inocente e a implacável sucessão de anos que me teletransportou até hoje. Trinta e cinco, repito em surdina enquanto deixo a crua materialidade dos dígitos assentar e agitar o fundo poeirento da minha história.

- Pai, quantos dias são trinta e cinco anos? E quantas horas?

Não pode ser isso tudo. Não tenho como justificar tantos dias, tantas horas. Nem tenho história para esse tempo todo. Os tempos mortos não deviam contar, só os grandes acontecimentos. Quando era novo olhava para os trintões e rotulava-os de velhos. Nem conseguia imaginar-me com tal idade e muitas vezes pensei que estaria morto antes disso. Aqui estou contudo, trintão maduro em velocidade de cruzeiro em direcção aos quarenta.

- Pai, como era o mundo antigamente? Sabes, quando tu eras pequeno?

Depois de uns segundos de hesitação apanho o computador do chão, baixo a tampa sem verificar o estado em que se encontra e ergo-me num pulo. Um par de segundos à espera da tontura mas esta não vem, como se o sangue tivesse percebido a minha urgência e acelerado o regresso ao cérebro, como se o corpo refutasse o insulto e quisesse provar que continua fresco e pronto para a guerra. "O pior de ser velho é lembrar-se de quando se era novo", diz a personagem do filme. Benditos os filmes que nos fazem pensar, que nos sugam as referências morais e acabam numa indefinição de bem ou mal.

- Meninos, estão prontos para sair? Chega de perder o dia com preguiças.

Isto nada significa para eles. A percepção do tempo na infância é única. As crianças gerem o tempo como milionários às compras num centro comercial: há muito para gastar, o desperdício é trivial. Só quem percebe que é finito e o sente encurtar se preocupa em aplicá-lo sabiamente.
Por vezes imagino-me velho. Sem idade concreta - a contagem relevante é a dos anos que nos restam, não a dos que já passaram - mas no fim dos meus dias. E tenho infinita pena de partir, de deixar de cá estar, de saber que o mundo continua sem mim. Pouco importa quanto ou como vivi, vou sempre ambicionar mais. Gostava de acreditar numa vida para além da morte, numa continuação qualquer.

Saímos e passamos o dia em tarefas. Ao final da tarde regressamos a casa e podemos enfim gozar descomplexadamente a companhia uns dos outros. Sou um jovem e tenho ainda tudo pela frente.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Nuno!

Diálogo singular ente ti, a Lindinha... e o computador. As perguntas que ela se lembra de fazer!!!
Terminas em beleza: «Sou um jovem e tenho ainda tudo pela frente».
Se os 35 te assustaram, imagina os 60s. Nesta fase da vida, e falo por mim, claro, já se começa a tentar estar preparado para deixar de cá estar e o mundo continuar sem nós. Inventamos argumentos para nos convencermos que já não fazemos falta a ninguém, que até já fomos uns sortudos por termos chegado até a esta idade,que não queremos dar trabalho a ninguém e que é melhor partirmos quando deixarmos de ser autónomos. Não queremos sentir-nos empecilhos nem os alvos de sacrifícios ou fardos para outros, incluindo a família. Mas quase nada está nas nossas mãos, pois não nos é dada a opção de escolha, tipo, quando queres, onde, como??? A não ser que faças «justiça pelas tuas próprias mãos».
Numa coisa estou de acordo contigo. Quem me dera acreditar numa vida para além da morte! Então não é que tudo seria mais fácil!!! Beijinhos