Os EUA tem estado sobre muita pressão este ano. É verdade que também são muito barulhentos e exportam para todo o mundo os seus problemas internos. Este ano tem sido terrível: a pandemia; a tensão social, nomeadamente pela discriminação racial dos afro-americanos com o movimento Black Lives Matter (BLM); as manifestações de cada um dos polos diferentes (claramente não há dialogo); os fogos na costa Oeste; as eleições; tudo exacerbado pela postura, fora do habitual protocolo, do Presidente. Talvez por estar mais atenta aos EUA, talvez por ter mais tempo em mãos, tenho seguido com mais ou menos interesse.
A Makuks
recomendou-me a mini série do titulo, escrita por Ava DuVernay para a Netflix, baseada num caso verídico passado em 1989 no
Central Parque, em Nova Iorque. Disse-me que tinha visto esta série por
interesse e “para se educar em relação à questão do BLM” quando este explodiu Maio/Junho
deste ano.
A série
desenrola-se em quatro partes, explorando as vidas de cinco jovens (quatro
afro-americanos e um hispânico) que com idades entre 14 e 16 anos foram falsamente
acusados e condenados de um crime de violação de uma corredora no parque. A sua
liberdade foi-lhes tirada e quatro dos rapazes foram para correcção juvenil e
um, porque tinha 16 anos, foi para uma prisão de adultos. Não vou contar mais
da história - não quero estragar a quem pretenda ver. Recomendo.
Quero apenas
deixar nota da tensão emocional que despoletou em mim e o turbilhão na reflexão
que se lhe seguiu. Vi o primeiro episódio num dia, o segundo e terceiro no dia
seguinte, e o quarto (e final) no dia a seguir. As noites entre os episódios
foram de ansiedade...
A justiça
sempre foi um valor muito relevante para mim. Não sei qual com mais peso, se
por tendência natural, por me ter sido transmitido, ou fruto da formação “superior”
– certamente um misto de todos. A justiça e, claro, a liberdade que anda de
mãos dadas com aquela.
Uma das
poucas disciplinas que realmente me entusiasmou no curso de direito foi direito
penal, que aprendi visa garantir a salvaguarda do bem comum (não o bem do homem
enquanto individuo mas o bem da sociedade em que ele convive com outros homens).
Não de menor importância mencionar que, esse bem comum da sociedade não é
imutável: a sociedade transforma-se e evolui no tempo e é, por isso,
historicamente condicionada e não se pode compreender o sistema penal sem se
estudar as suas origens, as alterações e os valores culturais da sociedade que
esse sistema regula.
Tudo me
entusiasmava: os princípios gerais, os pressupostos de punição, as formas do
crime, as causas que excluíam a ilicitude e a culpa (legitima defesa, estado de
necessidade), as penas e substituição por multas, a liberdade condicional, as
penas acessórias, a escolha e medida da pena, o estudo dos diferentes crimes em
si.
Na altura em
que estudei a disciplina (já vão mais de 25 anos), lembro-me que a minha
critica ia no sentido de as penas contra o património serem regra geral mais
graves que as penas dos crimes contra as pessoas, o que para mim era absurdo. Hoje
em dia porém, muito mais duvidas me assaltam e a critica estende-se a muito
mais do que isso. O sistema penal – e os comentários sao notoriamente ao
sistema americano, apesar de alguns se alargarem a outros países, nomeadamente
o ponto 1 - tem de ser questionado por vários motivos: 1) pelas descobertas da
ciência; 2) pela falácia do sistema no todo, e em particular da selectividade
dos indivíduos que são investigados pela polícia; 3) pelo problema da prisão
não cumprir a função social de reeducação e reinserção na sociedade e antes o
encarceramento ser visto como meio de punição do criminoso; 4) pela
sobrelotação das prisões em alguns países; 5) pelo que acontece uma vez
cumprida a pena.
Haverá,
certamente, muitos mais pontos problemáticos e para discussão. Mas começo com
estes. Que são descomunais, cada um em si mesmo. E para os quais não tenho
resposta.
- 1)
As descobertas da ciência
Nas lições
deste ramo do direito foi-me ensinado que, para haver crime tem de haver um
facto voluntário e punível (o agente tem de ter conhecimento do fim, e tem de
querer cometê-lo). Ou seja, todo o fundamento de crime se baseia no fundamento
de que crime tem de ser um acto humano ilícito e culpável, pressupondo portanto
a ideia de racionalidade, conhecimento e de liberdade de escolha. O
racionalismo cartesiano “je pense, donc je suis” – a afirmação da natureza
racional do homem, que lhe assegura ao mesmo tempo razão e vontade livre.
Hoje em dia
porém, a biologia e neurociência já mais do que provaram que o racionalismo
cartesiano e consequentemente a base do sistema penal é arcaico e incompatível
com as descobertas da ciência sobre o comportamento humano. E isto porque
questionam a noção de livre arbítrio - não no sentido religioso ou espiritual
mas no sentido de escolha racional, - na qual todo o sistema penal se alicerça.
Sobre este
tema, recomendo Robert Sapolsky, professor na Universidade de Stanford. Muitas
das investigações da ciência revelam que:
- muito do
que fazemos quando pensamos que fazemos “escolhas morais” são meras
justificações post hoc para coisas que, subliminarmente, o nosso cérebro
sabia antes de percebermos que íamos nessa direcção;
- a influência
do que a mãe consumia enquanto o feto se desenvolvia no seu útero, teve sobre o
lóbulo frontal de uma pessoa.
- pelos 6
anos o estado socioecónomico de uma criança é um factor de previsão de quão
activo o lóbulo central é quando lhe é dada uma tarefa que pressupõe o
adiamento de uma recompensa;
- por essa
mesma idade, a espessura do cérebro (a sua performance) é influenciada pelo
estilo de maternidade e o stress que se teve na infância;
E assim
sendo, o sistema penal que se encarrega de julgar alguém que, a dada altura da
sua vida, teve uma falha na regulação do seu comportamento, não mais se pode
atrever hoje em dia a arrogar que essa tarefa é um domínio em que a
neurociência nada tem a dizer!
A
neurociência questionou as noções de livre arbítrio e de responsabilidade.
Deixar o critério à racionalidade, conhecimento e voluntariedade da acção,
sabemos agora que pode ser o equivalente a dizer que a pessoa é responsável por
ser alta, ou careca, ou bonita. E é portanto, ridículo. Consequentemente, a responsabilidade
torna-se irrelevante.
Claro que
isto não altera (de todo) a necessidade de proteger o bem comum, as pessoas,
por vezes a pessoa de si própria. Também não altera a noção de dissuasão ou
como se deve tratar a pessoa. Mas o que tem de mudar é como se analisa uma
falha na regulação do comportamento, as noções de culpa e Mal(dade), e portanto
o sistema penal em si.
- 2)
A selectividade dos indivíduos investigados pela policia
O que realmente
é trazido à baila nesta série é a selecção dos indivíduos que são presos (e
neste caso nem sequer com o intuito de serem reeducados para voltar ser
integrados na sociedade mas para apaziguamento sociopolítico através da punição).
Nela se mostra o quanto os indivíduos de raça negra estão muito mais expostos
ao escrutínio policial e ao sistema penal. Mostra também como e por quem essa
selecção é feita e como isso reflete, na sociedade contemporânea, a falácia do
discurso que legitima o sistema em si.
Neste ponto,
e também relacionado com o BLM, também recomendo o documentário “13th”
(relativo à 13 alteração da Constituição dos EUA em 1865). Igualmente escrito
por Ava DuVernay, defende a ideia de que no pós guerra civil americano e face a
um sério problema económico-social advindo da abolição da escravatura, esta
norma permitiu ao legislador a criação de um sistema de mão de obra barata que evoluiu,
sobretudo desde os últimos anos do seculo XX, para a actual detenção maciça da
população afro-americana por forma a manter a subsistência da economia
americana.
A lei diz:
“não haverá, nos EUA ou sem qualquer lugar sob sua jurisdição, nem escravidão,
nem trabalhos forcados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha
sido devidamente condenado” (meu sublinhado).
No
documentário, defende-se que:
- a abolição
da escravatura foi substituída no pós-guerra civil com legislação e prácticas
que a substituíram;
- Os Estados
do Sul criminalizaram infracções menores com isso prendendo homens tornados
livres e, com isso forçando-os a trabalho não remunerado caso não conseguissem
pagar a multa. Com isso institucionalizando o incentivo a criminalizar mais
pessoas negras;
- essa parte
da população foi excluída do sistema politico (pessoas condenadas, ainda que
por infracções menores, não podem votar);
- legislação
conhecida por Jim Crow legalizou a segregação e suprimiu as minorias, com isso
forcando-as a um estatudo de cidadãos de segunda classe;
- em 1960,
com a legislação que restabelecia os direitos civis na era de Martin Luther
King, o documentário refere que é feito um apelo aos conservadores brancos do
sul, incluindo a pretensão de lutar a guerra contra o crime e a guerra contras
as drogas, que começou a incluir sentenças obrigatórias e longas;
- surge uma
nova onde de supressão minoritária, atingindo afro-americanos e outros noutros
estados da federação, para onde tinha havido uma migração em massa em décadas
anteriores.
- a partir
da década de 1970 até ao presente, a taxa de encarceramento e numero de pessoas
nos estabelecimentos prisionais dos EUA subiu drasticamente, ainda que a taxa
de criminalidade tenha vindo a descer desde o final do século XX, apesar de
políticos gerarem medo do crime (que não era suportado pelos dados
disponíveis). No entanto pequenas infracções são condenáveis, com isso
incentivando a detenção e manutenção de prisões cheias;
- em
2016, os EUA tinha cerca de 5% da população mundial mas 25% dos prisioneiros
mundiais (sublinhado meu). E a raça negra (de género masculino) estava
maioritariamente representada nesta população.
O
documentário revela a exposição da minoria afro-americana ao longo dos séculos,
primeiro com a escravatura, depois com exploração sociopolítica das minorias,
implacável por parte dos brancos, para servir fins económicos.
No século
XXI, e em particular este ano, a indignação veio as ruas por causa da
discriminação continua e regular de alguns agentes da policia em confrontos
aparentemente menores, sendo no documentário apresentado um gráfico de
ocorrências bastante diverso consoante a cor da pele.
Ainda no
tema, o moto “law and order”, é conhecido na politica moderna com um pedido de
aplicação estrita do sistema penal, em especial no que se relaciona com
violência e crimes contra o património (ou propriedade). Apoiantes da “law and
order” são geralmente de direita que defendem que prisão é o meio mais
eficiente de prevenir o crime (e portanto apoiam a militarização da policia e o
encarceramento maciço), ao passo que os apoiantes da esquerda defendem que
punição severa e ineficiente já que não olha para os problemas sistémicos na
base dos crimes.
- 3)
A função da pena
Desadequada
de acordo com os argumentos em 1) e 2).
- 4)
A sobrelotação das prisões nos EUA
Justificada
segundo o documentário 13th, por questões socioeconómicas. Importa mencionar
que este ponto se aplica em concreto aos EUA (e parece que Inglaterra tem a
mesma tendência).
Na Holanda,
por exemplo, a tendência é a oposta tendo desde 2004 a população de prisioneiros
passado para metade e estabelecimentos prisionais fechado, por falta de
prisioneiros. Aspecto importante desta tendência e que a Holanda quer evitar
que pessoas sejam presas a menos que seja absolutamente necessário, e para tal
contribui um programa de cuidado comunitário de pessoas com problemas
psiquiátricos. Trabalha-se com dois objectivos: prevenir o crime e, por outro
lado, apoiar quem tem precisa de apoio socio-psiquiátrico (notando que são
pessoas com vulnerabilidade psicótica, autismo, dificuldades de aprendizagem
etc que, em combinação com outros desequilíbrios, vícios, problemas
financeiros, etc, estão traumatizadas.
- 5)
Quando a pena foi cumprida
Em 1993 (em
Washington e no ano seguinte na Califórnia) implementou-se em mais de metade
dos estados dos EUA uma medida legal com o objecivo de aumentar drasticamente a
pena dos condenados reincidentes. Na maioria dos estados, apenas processos crimes
(e não efectiva condenação) são considerados, mas há estados, como por exemplo (e
surpreendentemente) a Califórnia, em que infracções ou contraordenações podem
ser elegíveis para a contagem.
Um dos
efeitos desta medida é de que estas pessoas não podem votar. No documentário
acima referido, explica-se que sendo os indivíduos afro-americanos muito mais
averiguados pela policia, a sua probabilidade de cair na situação de não poder
votar é muito maior.
Isto não é nada de novo. A criação e manutenção de sistemas de desigualdade social tem, muito
tristemente, vastíssima e longa história. “Nós, eles” - é como os humanos se organizam mentalmente
para conseguir operar.
Como é que,
em pleno século XXI, continuamos tão desinformados e deseducados é que me
embasbaca. Assusta-me o extremismo e ensurdecimento das diferentes posições que
se tomam. Vivo na utopia de querer um mundo sem desigualdade social, e em que o
diálogo sane essas diferenças.
Patrícia