17.9.20

When Will They See Us

Os EUA tem estado sobre muita pressão este ano. É verdade que também são muito barulhentos e exportam para todo o mundo os seus problemas internos. Este ano tem sido terrível: a pandemia; a tensão social, nomeadamente pela discriminação racial dos afro-americanos com o movimento Black Lives Matter (BLM); as manifestações de cada um dos polos diferentes (claramente não há dialogo); os fogos na costa Oeste; as eleições; tudo exacerbado pela postura, fora do habitual protocolo, do Presidente. Talvez por estar mais atenta aos EUA, talvez por ter mais tempo em mãos, tenho seguido com mais ou menos interesse.

A Makuks recomendou-me a mini série do titulo, escrita por Ava DuVernay para a Netflix,  baseada num caso verídico passado em 1989 no Central Parque, em Nova Iorque. Disse-me que tinha visto esta série por interesse e “para se educar em relação à questão do BLM” quando este explodiu Maio/Junho deste ano.

A série desenrola-se em quatro partes, explorando as vidas de cinco jovens (quatro afro-americanos e um hispânico) que com idades entre 14 e 16 anos foram falsamente acusados e condenados de um crime de violação de uma corredora no parque. A sua liberdade foi-lhes tirada e quatro dos rapazes foram para correcção juvenil e um, porque tinha 16 anos, foi para uma prisão de adultos. Não vou contar mais da história - não quero estragar a quem pretenda ver. Recomendo.

Quero apenas deixar nota da tensão emocional que despoletou em mim e o turbilhão na reflexão que se lhe seguiu. Vi o primeiro episódio num dia, o segundo e terceiro no dia seguinte, e o quarto (e final) no dia a seguir. As noites entre os episódios foram de ansiedade...

A justiça sempre foi um valor muito relevante para mim. Não sei qual com mais peso, se por tendência natural, por me ter sido transmitido, ou fruto da formação “superior” – certamente um misto de todos. A justiça e, claro, a liberdade que anda de mãos dadas com aquela.

Uma das poucas disciplinas que realmente me entusiasmou no curso de direito foi direito penal, que aprendi visa garantir a salvaguarda do bem comum (não o bem do homem enquanto individuo mas o bem da sociedade em que ele convive com outros homens). Não de menor importância mencionar que, esse bem comum da sociedade não é imutável: a sociedade transforma-se e evolui no tempo e é, por isso, historicamente condicionada e não se pode compreender o sistema penal sem se estudar as suas origens, as alterações e os valores culturais da sociedade que esse sistema regula.  

Tudo me entusiasmava: os princípios gerais, os pressupostos de punição, as formas do crime, as causas que excluíam a ilicitude e a culpa (legitima defesa, estado de necessidade), as penas e substituição por multas, a liberdade condicional, as penas acessórias, a escolha e medida da pena, o estudo dos diferentes crimes em si.

Na altura em que estudei a disciplina (já vão mais de 25 anos), lembro-me que a minha critica ia no sentido de as penas contra o património serem regra geral mais graves que as penas dos crimes contra as pessoas, o que para mim era absurdo. Hoje em dia porém, muito mais duvidas me assaltam e a critica estende-se a muito mais do que isso. O sistema penal – e os comentários sao notoriamente ao sistema americano, apesar de alguns se alargarem a outros países, nomeadamente o ponto 1 - tem de ser questionado por vários motivos: 1) pelas descobertas da ciência; 2) pela falácia do sistema no todo, e em particular da selectividade dos indivíduos que são investigados pela polícia; 3) pelo problema da prisão não cumprir a função social de reeducação e reinserção na sociedade e antes o encarceramento ser visto como meio de punição do criminoso; 4) pela sobrelotação das prisões em alguns países; 5) pelo que acontece uma vez cumprida a pena.   

Haverá, certamente, muitos mais pontos problemáticos e para discussão. Mas começo com estes. Que são descomunais, cada um em si mesmo. E para os quais não tenho resposta.

  1. 1)     As descobertas da ciência

Nas lições deste ramo do direito foi-me ensinado que, para haver crime tem de haver um facto voluntário e punível (o agente tem de ter conhecimento do fim, e tem de querer cometê-lo). Ou seja, todo o fundamento de crime se baseia no fundamento de que crime tem de ser um acto humano ilícito e culpável, pressupondo portanto a ideia de racionalidade, conhecimento e de liberdade de escolha. O racionalismo cartesiano “je pense, donc je suis” – a afirmação da natureza racional do homem, que lhe assegura ao mesmo tempo razão e vontade livre.

Hoje em dia porém, a biologia e neurociência já mais do que provaram que o racionalismo cartesiano e consequentemente a base do sistema penal é arcaico e incompatível com as descobertas da ciência sobre o comportamento humano. E isto porque questionam a noção de livre arbítrio - não no sentido religioso ou espiritual mas no sentido de escolha racional, - na qual todo o sistema penal se alicerça.

Sobre este tema, recomendo Robert Sapolsky, professor na Universidade de Stanford. Muitas das investigações da ciência revelam que:

- muito do que fazemos quando pensamos que fazemos “escolhas morais” são meras justificações post hoc para coisas que, subliminarmente, o nosso cérebro sabia antes de percebermos que íamos nessa direcção;

- a influência do que a mãe consumia enquanto o feto se desenvolvia no seu útero, teve sobre o lóbulo frontal de uma pessoa.

- pelos 6 anos o estado socioecónomico de uma criança é um factor de previsão de quão activo o lóbulo central é quando lhe é dada uma tarefa que pressupõe o adiamento de uma recompensa;

- por essa mesma idade, a espessura do cérebro (a sua performance) é influenciada pelo estilo de maternidade e o stress que se teve na infância;   

E assim sendo, o sistema penal que se encarrega de julgar alguém que, a dada altura da sua vida, teve uma falha na regulação do seu comportamento, não mais se pode atrever hoje em dia a arrogar que essa tarefa é um domínio em que a neurociência nada tem a dizer!

A neurociência questionou as noções de livre arbítrio e de responsabilidade. Deixar o critério à racionalidade, conhecimento e voluntariedade da acção, sabemos agora que pode ser o equivalente a dizer que a pessoa é responsável por ser alta, ou careca, ou bonita. E é portanto, ridículo. Consequentemente, a responsabilidade torna-se irrelevante.

Claro que isto não altera (de todo) a necessidade de proteger o bem comum, as pessoas, por vezes a pessoa de si própria. Também não altera a noção de dissuasão ou como se deve tratar a pessoa. Mas o que tem de mudar é como se analisa uma falha na regulação do comportamento, as noções de culpa e Mal(dade), e portanto o sistema penal em si.

  1. 2)     A selectividade dos indivíduos investigados pela policia

O que realmente é trazido à baila nesta série é a selecção dos indivíduos que são presos (e neste caso nem sequer com o intuito de serem reeducados para voltar ser integrados na sociedade mas para apaziguamento sociopolítico através da punição). Nela se mostra o quanto os indivíduos de raça negra estão muito mais expostos ao escrutínio policial e ao sistema penal. Mostra também como e por quem essa selecção é feita e como isso reflete, na sociedade contemporânea, a falácia do discurso que legitima o sistema em si.

Neste ponto, e também relacionado com o BLM, também recomendo o documentário “13th” (relativo à 13 alteração da Constituição dos EUA em 1865). Igualmente escrito por Ava DuVernay, defende a ideia de que no pós guerra civil americano e face a um sério problema económico-social advindo da abolição da escravatura, esta norma permitiu ao legislador a criação de um sistema de mão de obra barata que evoluiu, sobretudo desde os últimos anos do seculo XX, para a actual detenção maciça da população afro-americana por forma a manter a subsistência da economia americana.  

A lei diz: “não haverá, nos EUA ou sem qualquer lugar sob sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forcados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado” (meu sublinhado).

No documentário, defende-se que:

- a abolição da escravatura foi substituída no pós-guerra civil com legislação e prácticas que a substituíram;

- Os Estados do Sul criminalizaram infracções menores com isso prendendo homens tornados livres e, com isso forçando-os a trabalho não remunerado caso não conseguissem pagar a multa. Com isso institucionalizando o incentivo a criminalizar mais pessoas negras;

- essa parte da população foi excluída do sistema politico (pessoas condenadas, ainda que por infracções menores, não podem votar);

- legislação conhecida por Jim Crow legalizou a segregação e suprimiu as minorias, com isso forcando-as a um estatudo de cidadãos de segunda classe;

- em 1960, com a legislação que restabelecia os direitos civis na era de Martin Luther King, o documentário refere que é feito um apelo aos conservadores brancos do sul, incluindo a pretensão de lutar a guerra contra o crime e a guerra contras as drogas, que começou a incluir sentenças obrigatórias e longas;

- surge uma nova onde de supressão minoritária, atingindo afro-americanos e outros noutros estados da federação, para onde tinha havido uma migração em massa em décadas anteriores.

- a partir da década de 1970 até ao presente, a taxa de encarceramento e numero de pessoas nos estabelecimentos prisionais dos EUA subiu drasticamente, ainda que a taxa de criminalidade tenha vindo a descer desde o final do século XX, apesar de políticos gerarem medo do crime (que não era suportado pelos dados disponíveis). No entanto pequenas infracções são condenáveis, com isso incentivando a detenção e manutenção de prisões cheias;

- em 2016, os EUA tinha cerca de 5% da população mundial mas 25% dos prisioneiros mundiais (sublinhado meu). E a raça negra (de género masculino) estava maioritariamente representada nesta população.

O documentário revela a exposição da minoria afro-americana ao longo dos séculos, primeiro com a escravatura, depois com exploração sociopolítica das minorias, implacável por parte dos brancos, para servir fins económicos.

No século XXI, e em particular este ano, a indignação veio as ruas por causa da discriminação continua e regular de alguns agentes da policia em confrontos aparentemente menores, sendo no documentário apresentado um gráfico de ocorrências bastante diverso consoante a cor da pele. 

Ainda no tema, o moto “law and order”, é conhecido na politica moderna com um pedido de aplicação estrita do sistema penal, em especial no que se relaciona com violência e crimes contra o património (ou propriedade). Apoiantes da “law and order” são geralmente de direita que defendem que prisão é o meio mais eficiente de prevenir o crime (e portanto apoiam a militarização da policia e o encarceramento maciço), ao passo que os apoiantes da esquerda defendem que punição severa e ineficiente já que não olha para os problemas sistémicos na base dos crimes.

  1. 3)     A função da pena

Desadequada de acordo com os argumentos em 1) e 2).

  1. 4)     A sobrelotação das prisões nos EUA

Justificada segundo o documentário 13th, por questões socioeconómicas. Importa mencionar que este ponto se aplica em concreto aos EUA (e parece que Inglaterra tem a mesma tendência).

Na Holanda, por exemplo, a tendência é a oposta tendo desde 2004 a população de prisioneiros passado para metade e estabelecimentos prisionais fechado, por falta de prisioneiros. Aspecto importante desta tendência e que a Holanda quer evitar que pessoas sejam presas a menos que seja absolutamente necessário, e para tal contribui um programa de cuidado comunitário de pessoas com problemas psiquiátricos. Trabalha-se com dois objectivos: prevenir o crime e, por outro lado, apoiar quem tem precisa de apoio socio-psiquiátrico (notando que são pessoas com vulnerabilidade psicótica, autismo, dificuldades de aprendizagem etc que, em combinação com outros desequilíbrios, vícios, problemas financeiros, etc, estão traumatizadas.  

  1. 5)     Quando a pena foi cumprida

Em 1993 (em Washington e no ano seguinte na Califórnia) implementou-se em mais de metade dos estados dos EUA uma medida legal com o objecivo de aumentar drasticamente a pena dos condenados reincidentes. Na maioria dos estados, apenas processos crimes (e não efectiva condenação) são considerados, mas há estados, como por exemplo (e surpreendentemente) a Califórnia, em que infracções ou contraordenações podem ser elegíveis para a contagem.

Um dos efeitos desta medida é de que estas pessoas não podem votar. No documentário acima referido, explica-se que sendo os indivíduos afro-americanos muito mais averiguados pela policia, a sua probabilidade de cair na situação de não poder votar é muito maior.


Isto não é nada de novo. A criação e manutenção de sistemas de desigualdade social tem, muito tristemente, vastíssima e longa história. “Nós, eles” -  é como os humanos se organizam mentalmente para conseguir operar.

Como é que, em pleno século XXI, continuamos tão desinformados e deseducados é que me embasbaca. Assusta-me o extremismo e ensurdecimento das diferentes posições que se tomam. Vivo na utopia de querer um mundo sem desigualdade social, e em que o diálogo sane essas diferenças.

Patrícia

15.9.20

Caravaggio-Bernini: arte barroca em Roma

Enquanto ainda em Amesterdão, aproveitemos as suas maravilhas. O museu Rijks é uma delas!

Andava com a exposição debaixo de olho desde Fevereiro (quando começou) mas depois com a pandemia, encolhi-me. Felizmente estenderam o prazo até dia 13 de Setembro e, apesar dos novos protocolos, conseguimos (o Grandalhão e eu) visitar.

A exposição revela o imenso vigor artístico e a renovação radical nas artes, em Roma, no período de 1600 a 1640, com o surgimento da arte denominada “barroca”, provocado por uma série de mudanças económicas, sociais e, principalmente, religiosas. O estilo barroco traduz a tentativa, quase angustiante, de conciliar forças opostas: o Bem e o Mal; Deus e o Diabo; o Céu e a Terra; a Pureza e o Pecado; a Alegria e a Tristeza; o Espirito e a Matéria.

As características básicas do movimento que começou em Itália mas se difundiu por toda a Europa (por influência dos papas), com especial enfoque nos países católicos eram: a teatralidade da obra; o contraste claro-escuro (“chiaroscuro”); o realismo (abrangendo todas as camadas sociais); o conflito / tensão emocional (baseando-se no principio segunda o qual a fé deveria ser atingida através dos sentidos e da emoção e não apenas pelo raciocínio); o forte apelo da obra, que impressiona os sentidos do observador; os temas míticos ou religiosos; as cenas quotidianas e; a escolha de cenas no seu momento de maior intensidade dramática.

A exposição do Rijks foi organizada à volta de termos-chave no vocabulário artístico da época, tal como, deslumbramento (“meraviglia”), vivacidade (“vivezza”), movimento (“moto”), brincadeira (“scherzo”) e horror (“terribilità”). E as estrelas de cartaz eram Caravaggio (pintor) e Bernini (escultor) mas muitas mais estavam representadas. Artistas que foram rebeldes e pioneiros de uma nova expressão de arte e de cooperação entre diferentes disciplinas. Nesta época a arte foi intensa e arrebatada, e os artistas transformavam o dia a dia em verdadeiras e emocionantes obras primas.

Um movimento artístico que deixou marcas por toda a Europa na qual a primeira grande tarefa do artista era de evocar emoções (muitas vezes ligadas à religião). Este movimento foi predominante sobretudo nos países católicos. Nos países protestantes, dir-se-ia ter passado mais à margem já que o consideravam excessivo e melodramático. Todavia, é com este movimento que se junta um novo género de pintura aos tradicionais, o da natureza morta, composição mais ou menos complexa com objectos da vida quotidiana: flores; livros; peças de caça e outros.  É notória a influência em Rembrandt e seus contemporâneos.

Pela primeira vez, os artistas se juntam e nos trabalhos completos da arte: escultores, pintores e arquitectos, colaboram.

A pintura torna-se bem mais naturalista e, consequentemente, poderosa. Caravaggio, mestre do “chiaroscuro”, mostrando um absoluto domínio da luz e da sombra para sublinhar a tensão dramática e assim obter o máximo impacto emocional. Tinha o dom de capturar a essência de uma cena, combinando o naturalismo com uma mensagem profunda, cortando a respiração a quem vê os seus quadros e chamando-nos para a acção do quadro.  

Bernini experimentou as possibilidades da escultura até aos seus limites: com ele a pedra é trazida à luz. Quão longe se vai pela arte? O mestre escultor, na tentativa de representar expressões de dor tão realistas quanto possível, estudou a sua própria cara enquanto se queimava com brasas! As esculturas já não são concebidas segundo esquemas geométricos, mas sim combinando movimentos, soltos e vivos, das figuras.

Artistas de toda a Europa acorriam à Cidade Eterna para estudar o barroco. Atraídos pelas ruinas da antiguidade clássica e do renascimento, e pelo novo fulgor da Igreja Católica, criando arte inovadora em que a beleza tomou um novo significado, e o horrível também passou a ser visto como belo (a ideia de que o horror vai de mãos dadas com o deslumbramento).

Em Portugal, o Barroco não se inicia em 1600. Nessa época, Portugal estava sob o domínio espanhol e a lutar pela independência que ocorrerá em 1640. O Palácio Nacional de Mafra (construído entre 1717-1730) é o mais internacional dos edifícios barrocos portugueses. O barroco também se fazia sentir na literatura, na qual Padre António Vieira é o expoente máximo.

Voltando ao Rijks, destaque para algumas obras-primas expostas que tivémos o privilégio de ver ao vivo, e nota para que a maravilha está sempre no detalhe, foram:

·      Medusa, de Bernini. Um busto de mármore do mito grego Medusa: a fêmea monstruosa que tinha serpentes como cabelos e que transformava em pedra quem a olhasse nos olhos. Acho de um sarcasmo delicioso que Bernini tenha decidido esculpir em pedra o mito;

·       Fauno, De Quesnoy. O torso duma escultura do século II foi escavada e comissionada a De Quesnoy para restauro por Rondinini. Curiosamente, o restaurador opta por pés em vez de patas de cabra (como normalmente os faunos são representados). A imagem sugere acções diversas e movimento: cantar, dançar, tocar os címbalos das mãos  


O sacrifício de Isaac, de Gentileshi. No momento decisivo em que Abraão se presta a provar a sua devoção a deus e a sacrificar o seu filho, um anjo agarra-lhe a mão e aponta para o céu. Abraão e o anjo olham-se intensamente nos olhos e o primeiro parece perdido;  


·       Cristo Morto e Chorado, de Carracci. A Virgem Maria sucumbe com a perda do seu filho e reflecte a sua postura e expressão facial. Outras três Marias também presentes: Maria Madalena (de vermelho); Maria Cleophas (de pé); e Maria Salomé (que segura a Virgem).  Cada uma delas exprimindo a dor a sua maneira, assim oferecendo o pintor diferentes maneiras de empatizar com Cristo e a Virgem;


Piedade, de Carracci. Neste quadro o pintor revela as emoções da Virgem através do subtil jogo de cor. O azul frio do seu vestido concilia-se com o azul pálido de Cristo. Os seus dedos e lábios são azuis, tal como a ferida do filho. O amarelo evidencia-se, anunciando a ressurreição. Os anjos a conforta-la criam compaixão para com a dor da Virgem.


A Coroação de Espinhos, de Caravaggio. A dor infligida a Cristo e a compaixão revelada pelo personagem contemporâneo do pintor no canto esquerdo.

·       A incredulidade de São Tomás (na ressurreição de Cristo), de Preti. Por nós conhecido como “ver para crer”. A duvida do Santo do milagre que Cristo tenha voltado do mundo dos mortos é tal que o Santo coloca os dedos na ferida. A reacção dos outros apóstolos (e a esperada dos cristãos-observadores) é outra, de compaixão e agradecimento, dando graças aos céus.


João Baptista, de Caravaggio. Um quadro simples mas com um poder de luz ao vivo absolutamente fascinante já que parece ter luz própria que transborda dele e ilumina o observador (infelizmente a foto não faz juz ao pintor e captura o efeito como ao vivo);

A meditação de São Francisco de Assis, de Caravaggio. O domínio da luz, como se fossem raios de luar que iluminam a face, a caveira e o livro. O Santo inclina-se neste brilho sobrenatural. Com isto o Mestre enfatiza a recepção do Santo da mensagem do evangelho. O Santo está muito quieto mas ao mesmo tempo experienciando uma grande tensão interna;

·       Caim a matar Abel, de Manfredi. A acção e emoção (externa e interna) manifestam-se nesta pintura. O pintor mostra o momento (e movimento) em que Abel está encurralado e vai perecer às mãos de seu irmão.  

Hércules, de Maderno. A inovação destas esculturas está no fabuloso dinamismo de cada detalhe da pedra que parece mover-se.


Dédalo e Ícaro, de Sacchi – um dos meus preferidos – mostra a relação complexa entre pai e filho: o pai ata as asas no peito do filho e, anxiosamente, dá-lhe as ultimas instruções para o seu voo conjunto. Lágrimas escorrem da sua face, como se antecipasse já a tragedia que se ira abater sobre eles. Em vão tenta estabelecer contacto com o filho que distraído sonha com o seu novo poder.


Séneca, de Finelli. Este busto foi feito pelo escultor no seculo XVII, seguindo um modelo que se pensava retratar o filosofo estoico e politico romano Séneca. O realismo (o cabelo, barba, pele) é muito impressionante.

E mais havia para nos maravilhar. Sempre.

Patrícia

14.9.20

Natação da Makuks em pausa

Passados 5 anos de práctica da natação sincronizada, e muita hesitação, a nossa Golfinha resolveu fazer uma pausa. Como planeamos mudar de poiso não faria muito sentido continuar por mais uns meses no grupo que, em principio, não poderá participar.

A mim, dá-me um misto de emoções: o primeiro é de alivio da ditadura que a actividade impunha, mas também sei da importância que uma actividade tem na formação da identidade, e da indispensabilidade do movimento para o bem estar físico e emocional de todos, e, em concreto para a Makuks. O Campeão teve de parar o  seu râguebi quando se lesionou, e bem vi a falta que a actividade, e de tudo o que a acompanhava, lhe fez.

Claro que quando se fecha uma porta, se abrem outras e terá muitas horas extra em mãos para experimentar novas actividades – a ver vamos o que decide fazer.

Entretanto, aos sábados de manhã, comprometeu-se a dar as aulas de natação às meninas iniciadas que experimentam a actividade pela primeira vez esta época. O sábado passado foi a primeira sessão.

 Patrícia

12.9.20

As deusas verdes à minha janela

Estamos perto, mas ainda não chegados a meio deste Setembro.  

Das janelas da sala – podia também ser dos quartos – vejo as árvores da minha rua.

Pequeno parêntesis: uso ali rua num sentido romântico, sei que é termo tecnicamente desadequado. Rua é uma “via pública para circulação urbana, total ou parcialmente ladeada de casas”. A nossa “rua” é uma Avenida – tem uma extensão maior que o de uma rua e múltiplas faixas para a circulação de veículos”. Ou, em abono da verdade, uma Alameda que é uma rua densamente povoada por árvores: alameda vem do álamo, um tipo de árvores. 

No caso da nossa rua, são ulmeiros junto aos prédios (da nossa janela frontal não vemos nenhuma mas se for uma lateral ja se ve) e tílias no centro da Alameda (as que vemos nas fotos) e que estão ainda, na sua maioria cobertas de folhas verdes, apesar de aqui e ali começarem a aparecer pequenos salpicos de amarelo. Os dias estão a encurtar e o Outono a chegar, que como dizia Camus, é uma segunda Primavera em que cada folha é uma flor.  

Podia passar horas, certamente todo tempo acumulado passei dias ou semanas, a olhá-las. Sobretudo as suas copas, distinguindo como só as folhas – por vezes também os ramos - ora oscilam, ora baloiçam, ora abanam, consoante a força e/ou a direcção do vento. O tronco principal, porque são estas árvores com 70 anos* que perderam a sua flexibilidade juvenil, nunca vi sequer vacilar.  

Não sei como há quem pense que as árvores são estáticas ou imoveis. Talvez passe essa ideia no inverno, quando se despem de todas as folhas e, num raro momento em que não passe vento e todos os ramos estão parados. E somando a isso a distracção de quem olha e não vê, que em abono da verdade há por ai muito quem assim viva.   

São umas existências encantadoras, estas árvores. Certamente companheiras e amigas que encontrei nesta rua. Sempre presentes. Sempre generosas. Das janelas ou do passeio. Fizesse sol, chuva ou, nas poucas vezes que nevou.

Tivemos especial sorte. Apesar de primeiro eu ter pensado ser azar. Um par de anos depois de termos mudado, trocaram um ulmeiro maduro cuja copa no verão sombreava a nossa casa por um jovem que ainda não atingiu a nossa altura (e vista). Ao inicio insurgi-me porque a arvore que foi, apesar de doente, já ser minha amiga. Mas fiz de novo amizade com o jovem ulmeiro, que também permite que o sol se amigasse da nossa sala e quartos e, com a frequência possível que as ciumentas nuvens lhe deixam, nos visite sem qualquer dificuldade.

Há anos que me vem à ideia tirar fotos periódicas – à mesma hora, da mesma janela – para ter registo do seu movimento e dinamismo ao longo do tempo – e assim poder provar a quem anda distraído que as árvores não são estáticas.

Vai ser agora.

Patrícia


* Em Amesterdão não se brinca em serviço e, no site do município encontrei um mapa de todas as árvores identificadas, inclusive de quando germinaram. Absolutamente genial e delicioso! Aprendi também que se planta árvores na cidade desde 1340 mas que apenas 25000 sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Felizmente o governo da cidade tem sido pródigo e competentemente reabastecido o espaço de árvores como mostra a imagem abaixo.

O Grandalhão sempre disse que na Holanda não há flora selvagem, tudo é planeado. É triste que assim seja em espaços fora da cidade mas confesso-me absolutamente rendida à visão, planeamento e promoção activa de árvores no ambiente urbano na Holanda.

O meu pensamento está agora em Porland, onde nos últimos dias arderam tantas. Se formos para lá, certamente plantarei árvores nativas e serei activa apoiante da sua reflorestação.

9.9.20

Línguas, níveis de fluência e dicção

O número de línguas que os filhos estudaram/falam é visto, regra geral, como uma das suas valias no presente e, como uma activo para a sua vida profissional futura. Mesmo se isto das línguas está longe de ser objectivo. No caso do Champs e da Kiks, estudaram formalmente 4 línguas mas falam 5 porque o português, apesar de falado no dia-a-dia em casa, nunca foi formalmente ensinado.

Noutra perspectiva, é muito debatível se, apesar da aprendizagem de uma segunda, terceira ou quarta língua, se é fluente nela (s). Diria que ser fluente numa língua não é a mesma coisa do que a ter formalmente aprendido - a sua gramática, algum vocabulário e se consiga compreender e expressar alguns temas básicos nela sem grande erros – e se se a fala com uma pronúncia irrepreensível… antes exige uma capacidade de se comunicar de forma ligeira, fácil e inteligível com pessoas diversas e em situações diferentes.

Creio que, bons indicadores de se se é, ou não, fluente podem por exemplo ser:

  • quando as pessoas nativas dessa língua não mudam a sua forma/ritmo de falar porque estão a falar consigo;
  • o entendimento do que se tem de instruções e de conversas paralelas (por exemplo numa indicação no aeroporto ou estacão de comboios ou de uma conversa de alguém numa mesa ao lado do café) não é um uma quebra cabeças e se entende o que se ouve sem ter de se processar a informação (ou de que se a está a processar noutra língua);
  •  há quem diga que se tem de dominar as asneiras – não, não significa apenas saber umas quantas porque para isso basta ir ao dicionário. Há que saber quando e em que contexto é apropriado usá-las.
  • para mim o mais apurado nível de fluência é quando se consegue entender o humor (que vem também muitas vezes associado a cultura e a própria história e portanto exige uma exposição mais prolongada) ou a mensagem nas entrelinhas, sobretudo em culturas conhecidas pela sua comunicação indirecta. E para mim estas e a fronteira seguinte e onde se pode discutir se a utilização da língua e de fluência ou de nativo.

Há ainda a discussão entre língua materna e nativa – que na maior parte dos casos da população é a mesma. Todavia, pode não ser coincidente: língua materna é, como o nome indica, a língua da mãe e (regra geral) falada em casa. Língua nativa é a língua na qual se é formalmente ensinado e que se domina por completo. No meu caso, o português é a minha língua materna e nativa. Já os filhos, tem como língua materna o português mas como língua nativa o francês – mesmo se creio que o nível de inglês deles já terá passado a fronteira para o nativo também. 

E finalmente, a dicção, pronúncia ou a parte fonética da língua em si. Pode-se ter o domínio fabuloso da gramática e vasto vocabulário de uma língua e no entanto errar-se-lhe na sonoridade. No caso de estrangeiros que aprendem português, o “ão” rapidamente os denuncia – todos sabemos. Li algures que, se uma língua não é praticada até aos 8 ou 9 anos de vida, dificilmente se consegue a fonética perfeita. E isto faz todo o sentido já que a nossa anatomia e fisiologia se adequam à língua que falamos: 1) o ponto ou lugar da cavidade oral é produzido (lábios, dentes, língua, alvéolos e palato); 2) o modo como o ar é expelido para produzir a fonação (de forma abrupta, continua ou com saída pela cavidade nasal etc); 3) o comportamento das pregas vocais (vibram ou não durante a passagem do ar pela laringe; 4) a posição do palato mole etc.

Ou seja, de “pequenino se torce o pepino” – ou não. No meu caso, considero-me fluente em francês e, no entanto, a minha pronúncia denuncia-me de imediato. E isto pode ser um ponto muito influente na confiança do uso da língua – ainda que a gramatica e vocabulário sejam mais do que suficientes.  

Mas vamos ao que interessa. A população mundial (o número de humanos que vivem actualmente no planeta terra) estima-se ser 7,8 mil milhões. Um pouco mais de 40% dessa população (pelos números abaixo 3,2 mil milhões) é nativa de uma das seguintes dez línguas:

#

Lingua

Nativos (em milhões)

% na populacao mundial

1

Mandarim

921.5

11.81%

2

Espanhol

463.0

5.94%

3

Ingles

369.7

4.74%

4

Hindi

342.0

4.38%

5

Arabe

274.0

3.51%

6

Bengali

228.5

2.93%

7

Portugues

227.9

2.92%

8

Russo

153.6

1.97%

9

Japones

126.2

1.62%

10

Cantones

84.5

1.08%

3,190.9

40.91%

Curiosamente, não aparece o francês nos top 10 – confesso que me surpreendeu já que o francês é língua oficial de uma boa parte da Africa subsariana. Segundo a minha pesquisa, nativos-falantes serão cerca de 76.8 milhões. Mas o número de falantes de francês é de 276.6 milhões.

O inglês tambem me surpreendeu porque apesar de os nativos serem menos de 370 milhões, estima-se que o numero total de falantes seja cerca de 1.3 mil milhões, ou seja, que apenas seja falado por 16% da populacao mundial. Esperava uma percentagem mais elevada.

Finalmente, holandês, assume-se que serão nativos cerca de 29 milhões (na Holanda e na Bélgica).

Tentei criar um mapa ilustrativo de onde os filhotes podem andar e falar uma das linguas oficiais. Estimo que por mais de metade do mundo, conseguindo, de forma fluente, comunicar. 

Sem dúvida uma valência que vale a pena continuar a lutar para não os deixar perder.

Patrícia

7.9.20

Memórias de Amersfoort

Há catorze anos (um bocadinho mais coisa porque era Julho de 2006) tirámos esta foto na praça central “Hof” de Amersfoort. 

Era o café do hotel em que passámos 3 semanas em família quando o Grandalhão começou a trabalhar em Hoevelakaan, na Bouwfonds International, a razão pela qual nos mudámos para os Países Baixos.

O Champs não tinha ainda os 4 anos. A Kiks não tinha ainda 3 meses, pelo que eu estava em licença de maternidade e podíamos acompanhar o Grandalhão nas suas primeiras semanas de trabalho. A empresa pagava o quarto de hotel para todos.

Não vínhamos com armas mas vínhamos de bagagem em punho – e não eram poucas porque o Grandalhão vinha para ficar e nós, para ficarmos quase um mês. Aterrámos em Amesterdão já pelo final da tarde de dia 1 de Julho de 2006, sábado. Nessa altura decorria o Campeonato do Mundo de Futebol na Alemanha e Portugal tinha eliminado a Holanda no fim de semana anterior. Depois de chegarmos de comboio a Amersfoort e deixarmos as malas no hotel, saímos para procurar jantar. As cozinhas de toda a cidade já tinham fechado – deviam ser 9 da noite – para começar o nosso choque cultural. A única coisa que encontrámos aberta foi uma gelataria e o jantar foi, para muito agrado do Champs, um crepe gelado. No domingo, a cidade parecia fantasma – não havia lojas ou cafés abertos a não ser na estacão de comboio.

O Grandalhão apresentou-se ao novo trabalho a 3 de Julho. Eu e os pequenotes ficávamos pelo hotel e a praça durante o dia: deu-se nessa altura uma temperatura muito elevada para aquelas bandas e o nosso quarto do hotel não tinha ar condicionado – lá mudámos para outro que tinha mas era bem mais pequeno. Saíamos todos os dias, para que o Champs se pudesse espraiar, para comprar pão fresco e acompanhamento para o almoço mas ao mesmo tempo para a Kiks poder dormir as suas sestas do dia. Carrinho para cima e para baixo a toda a hora mais toda a parafernália que com um bebé se carrega: mala com as fraldas e tudo o mais. Felizmente a Kiks nessa altura não exigia mais do que maminha, o que era uma alegria. E era muito práctico também. Havia uma loja de brinquedos que tinha uma pista de diques (em Portugal eram populares os comboios ou pistas de carros os brinquedos e na Holanda eram jogos de água, doidos que eles são diques e outros mecanismos de engenharia aquática) na rua e lá íamos para o Champs poder brincar um bocado. Ou ao final do dia, ter com o Grandalhão para o esperar – ele cansado e a adaptar-se a nova rotina, ritmo, línguas, procedimentos, equipa. Eu, a querer conversa de gente grande.

Ao sábado, na Hof, erguia-se pela madrugada um mercado de rua. Víamos da janela do nosso quarto toda a organização e montagem. A praça enchia-se de gente que vinha e ia cheia de compras. E ao fim do dia, muito ordeiramente, retiravam-se as barracas e bancas que tinham servido provavelmente toda a população da cidade e arredores. E ao domingo, de novo, uma desolação de uma cidade fantasma – não se via vivalma a não ser os praticantes da missa na igreja da praça.

Depois dessas três semanas, eu regressei com os meninos a Lisboa. Consolou-me de muito choro, meigo e preocupado, o Champs, pequenino, no aeroporto e no voo para Lisboa. O Nuno mudou-se para um estudio em Utrecht onde ficou até nos mudarmos todos em Janeiro de 2007 para Amesterdão. Entretanto em Agosto eu ainda vim por 10 dias com a Kiks – depois do Champs ter feito a operação aos ouvidos. Em Setembro voltei ao trabalho, o Champs a escola e a Kiks ficava com a nossa Narcisa (e as avós que visitavam todas as tardes). Era o Grandalhão que nos visitava muitos dos fins de semana. Foram tempos violentos. E ainda assim, tão felizes.   

Amersfoort ficou assim na nossa história como a cidade que nos recebeu na Holanda. É uma cidade medieval e bonitinha mas que por qualquer motivo não assentou em nos ou nos nela tal foi o choque. Só me lembro de lá ter voltado para um jogo de râguebi do Champs e ainda assim fora da cidade.

Eu e o Grandalhão voltámos lá agora, num dos nossos passeios. Para recordar. O hotel, Logement De Gaaper, onde tirámos a foto os quatro, lá está, na mesma. 


A cidade, conserva a sua indole medieval - as segundas muralhas da cidade, com portas por terra e por água. Os canais a reflectir o que se lhes passa por cima. Impassivel ás muitas historias que por lá se vivem, incluindo esta parte da nossa historia.










Recordar e talvez, para fechar o ciclo.

Patrícia