Lisboa, Novembro de 2000. Corro pela viela acima com
pressa de chegar. Não tenho tempo marcado mas cada segundo conta para estar contigo.
Larguei tudo lá atrás, deixei trabalho por fazer e colegas em apuros, fechei
dossiers e computador sem hesitação antes da hora, e isto tudo de rompante. Há
momentos assim, em que a ordem das coisas se torna tão evidente que o ritmo dos
acontecimentos à nossa volta diminui e nos permite ver com clareza cada passo
seguinte. Ainda me lembro da expressão da minha chefe na altura, um misto de
estupefacção pela ousadia e pânico pelo que mais poderia daí advir, tentou
dissuadir-me sem grande convicção e no final acabou por deixar-me partir num contragosto
simulado a encobrir a simpatia.
Peço guarida aos magros parapeitos distribuídos ao acaso
pela rua para evitar os pingos mais grossos de chuva. Falta-me a paciência para
esperar e continuo aos tropeções pela calçada. A sola fina dos sapatos resvala
na pedra escorregadia e várias vezes apoio-me na sorte para evitar a queda
dolorosa. Cais aqui e só páras lá em baixo junto aos carros. Pouco importa, o
risco compensa neste caso. A vida parou neste instante, o mundo condensa-se ao
tempo contigo, é imperativo chegar aos teus braços. Os cabelos pingam e afunilam
a água para a roupa interior, as pálpebras há muito cederam e deixaram aos olhos
o duplo ofício de apontar caminho e expulsar o líquido em excesso. Que seja,
até de gatas e às cegas aí chego.
Desde o princípio foste um sopro de vida, o despertar de
uma existência solipsista. Abriste-me os olhos para um mundo cor-de-rosa, eu
que por gosto e requinte me banqueteava no mais ácido negrume. És o prazer pela
vida e pela gente que estimas, a entrega e renúncia em nome dos teus, a emoção
sublimada em altos e baixos de pureza cristalina, a simplicidade elitista dos
afectos, o amor pelos sons cheiros imagens sabores autênticos oriundos do mais
fundo dos fundos dos seres e da origem do mundo. O que em outros e outras me
entedia e até repugna por falso ou oco, em ti me encanta pelo porte genuíno e
descomplexado.
No nosso refúgio na s.s.lima esquecíamos o mundo sem
sequer perceber que o fazíamos. Afastávamos tudo e todos com a ligeireza sobranceira
dos eleitos, embevecidos com a intensidade de cada segundo passado em conjunto,
compúnhamos juras de paixão eterna ao ritmo de músicas que um ou outro não
conhecia, planeávamos o futuro com a certeza que seria comum para sempre. Os
dias de trabalho passavam num ápice, meros intervalos na sessão de cinema em
que se tornou a nossa vida em conjunto. Ao sábado os nossos pequenos-almoços a
dois no café da esquina, no recato do anonimato de uma das zonas menos
sofisticadas da nossa cidade-luz, lançavam o fim-de-semana da melhor maneira.
Aos poucos fomos perdendo esse hábito do pequeno-almoço
fora, hoje já só o fazemos durante as férias e ainda assim com muito menor
entusiasmo. As rotinas são outras, nós somos outros, bastante mais velhos. A
comparar com essa altura em que começámos a conhecer-nos mutuamente, abandonámos
tabaco álcool café leite fritos e outros que tais, substituídos por açafrão gengibre
cajú amêndoa limão entre outros. Estamos estranhos, irreconhecíveis até aos
olhos de quem nos conheceu antes. Sabemos ao que vamos, mais por intuição do
que por deliberação, a evoluir juntos como sempre o fizemos. Mantém-se o desinteresse
geral pelos outros e suas opiniões, precisamente a característica comum que nos
atraíu um para o outro. Quanto mais nos acossam ou acusam, mais poderosa a
nossa união.
Cresceste perto do mar, a ele retornas por defeito assim
que tens oportunidade. No teu Magoito és feliz sem mais, quando o mundo acabar hás-de
lá estar em corpo ou em mente. Tu e o imortal Fritz numa eterna viagem de
scooter a caminho da tua praia. Sentada no largo muro de pedra branca que
serpenteia ao longo das arribas, pernas dobradas e recolhidas junto ao peito, camisola
de lã grossa e gola alta a cobrir camadas múltiplas de roupa interior, olhos bem
abertos focados no horizonte, deixas o vento marinho anichar-se nas narinas
para colheres e memorizares cada travo por mais ténue, saboreia-lo com a língua
e trincas o sal com os dentes, traduzes os uivos numa linguagem privada moldada
som a som ao longo de incontáveis diálogos mantidos décadas a fio aí mesmo, no
cimo desse muro.
Foi aí que nos encontrámos pela primeira vez fora do
trabalho. Já tinha estado naquela zona em passeios de mota, conhecia vagamente
o caminho. Costumava sentar-me naquele e noutros muros parecidos a ler, fumar,
reflectir. Só o som do mar por companhia, o prazer da solidão. Nesse dia
levaste os dois cães, branco e preto, velho e novo, contraste burlesco nada em
sintonia com o ambiente circundante. Quando foi isto, algures no Verão talvez
Setembro. Um dia de calor radiante, a praia exalava aquela neblina quase
invisível tão característica. O Pulga ainda cachorro nessa altura, hoje ainda
cá anda a desafiar as leis da biologia canina. Segui-te até casa, jogámos uma partida
de snooker, talvez tenham sido mais não consigo lembrar-me ao certo, estava
sempre a olhar à volta na expectativa da chegada de um pai, irmão, namorado
insultado com a minha presença.
Quantos debates sem fim ao longo destes anos. Começámos
aí, nesses dias de Verão há mais de década e meia, filosofias trocadas em mensagens
de texto e o gosto partilhado pelo mar. A certeza de uma vida a dois escrita num
destino em que nenhum dos dois acredita. Harmonia como costumas dizer, no que
dizíamos e fazíamos lá estava ela, uma ordem natural de interacção em que tudo
encaixava sem atrito, duas notas soltas integradas numa melodia inaudível. Que
digo eu, excedo-me agora, pois seja acontece ao mais arreigado dos cépticos. É
o diálogo contínuo que nos leva para a frente sem planos de antemão. Isso
graças a ti, à tua perseverança, à tua crença quase cega nas pessoas a quem sem
saber ler nem escrever foi oferecido o privilégio de te caírem no goto, eu em
particular na reincidência e na duração, eu um caso perdido afundado no meu casmurro
silêncio de eleição.
Já andámos por esse mundo, tu e eu. Frase batida,
expressão burgessa de quem se orgulha de viajar como se o acto conferisse só
por si estatuto acrescido, grandeza moral, posição social ou qualquer outra demonstração
de superioridade em relação aos outros que se deslocaram menos na geografia
terrestre. Digo andámos no sentido literal do termo, uma perna à frente da
outra, pés pousados no chão de trás para a frente de forma ritmada, começando
pelo encaixe tosco do calcanhar, seguido da flexão enérgica e côncava da sola
para equilíbrio e dinâmica, concluído com um gentil impulso dos dedos até a
pele da ponta mais remota do dedo mais comprido se libertar da tensão do solo. Pois
sim, sempre que possível optamos pelo meio de locomoção mais natural ao ser
humano, um dos avanços críticos da evolução da nossa espécie, e evitamos
esperas por transportes públicos e banhos de multidão desnecessários. O prazer sem
rival de uma caminhada, com todos os benefícios conhecidos ou por conhecer para
a saúde do corpo e da mente, que como hoje bem se aceita fazem parte de um
sistema único e integrado, um não passa ou sequer se define sem o outro, que
seria da mente tão glorificada nos seus significados mais restrito e mais lato
sem corpo que a enquadre informe contextualize, como poderia interpretar o meio
envolvente sem os sentidos, o mesmo para o corpo sem guia e ponto central de
conexão e interpretação de estímulos, a união máxima dos pequenos cérebros
distribuídos pelos pontos mais críticos como órgãos vitais e outros centros de
actividade, este todo constitui o universo na sua integridade mesmo para quem
não o realize, mais não há do que o que sentimos, a prova absoluta nas
deturpações de sentido e como comprometem a existência benigna. Falava dos
benefícios da caminhada e de como há muito adoptámos a rotina do andarilho nas
nossas aventuras mais ou menos quotidianas.
Gente de cidade que somos, nascidos e criados em ambiente
urbano, e neste aspecto a diferença entre as gentes é notória, diria até
discriminatória, ficando para sempre as agruras das lides do campo marcadas nas
mãos no pescoço nos olhos de quem aí se equipou para a idade adulta, assim como
a tontura do ritmo nas grandes cidades se infiltra no sangue daqueles que por
escolha ou fortuna dão os seus primeiros passos à sombra dos arranha-céus,
assim somos nós frutos do cimento e inapelavelmente atraídos por aventuras
citadinas. Tantas ruas de nomes perdidos, cidadãos distintos no seu tempo
respectivo, algo a que cada um de nós tem direito sem sequer o merecer, e ainda
assim por vezes despeita, indivíduos famosos por algo de bem que contribuíram
para a sociedade a que pertenceram, de quem ficou só a memória o nome uma placa
algures, a tantos nem esta honra lhes dão e nada mais deixam do que o efeito temporário
da sua presença nos outros. Nunca ligámos muito aos must see must do para o turista sequioso de cromos para a
caderneta, museus com filas de espera de horas, restaurantes na berra marcados
com meses de antecedência, estátuas ao ar livre a comemorar uma qualquer data
marcante, o tick in the box experiencial
na vez do materialismo mais tradicional de objectos. Antes nos ancoramos em
pontos de referência da cultura clássica ou pop, um ou dois no máximo por dia,
e entre esses vagueamos a pé por ruas anónimas, tomamos atalhos, paramos em
lojecas de aspecto diferente, procuramos o genuíno, algo que justifique a
viagem e nos dê um sentido de descoberta. Ou talvez isto tudo seja eu e tu facilitas
para me agradar, no fundo gostas dos programas com guias e explicações, das
visitas aos coliseu louvre buckingham todos do mundo clássico, eu vou contigo e
em ti me ancoro para enfrentar o insuportável incómodo das aglomerações de
gente, fecho os olhos e respiro fundo como um miúdo com medo da água, sou
engolido e só emerjo lá no fim quando deixaram de me sacodir e empestar com
todas as suas vontades ululantes de multidão. Por ti avanço, por ti regresso.
A primeira vez foi em Atenas na lua-de-mel, em pleno Verão
mal se podia respirar com poluição e calor, agora dizes que exagero que o calor
sabe tão bem, na altura estávamos habituados às temperaturas altas que faria
hoje, engraçados os truques da memória como achamos que nos lembramos quando
afinal se trata de impressões guardadas num labirinto de ligações entre
neurónios, um código até hoje indecifrável de sinais químicos e eléctricos,
meta data com umas toneladas de invenção à medida para compôr o filme, a
verdade como eu a lembro ou a tua como tu a recordas e o enorme intervalo entre
as duas emboras estivéssemos os dois lá no mesmo sítio no mesmo instante. Estava
um bafo insuportável especialmente à noite, ao corpo de que falávamos falta o arrefecimento
nocturno para olear os mecanismos de temperatura interna, a ideia que tenho é
que no quarto do hotel os pulmões não conseguiam aspirar oxigénio, como se o
calor o tivesse evaporado e só sobrasse azoto. Do mesmo quarto víamos o
parthenon luminoso ali mesmo ao alcance de um braço bem esticado, tudo de
repente voltava a estar em paz, uma vista destas só para alguns, que maravilha
que surreal milhares de anos de história iluminada só para nós, que pensariam
os atenienses antigos de um hotel para turistas ociosos a contemplar o seu
altar, oferenda aos deuses para com eles poderem dialogar, deuses à imagem do
homem ou pura coincidência da parecença.
Brinco agora, esta minha faceta gozona que volta e meia te
apoquenta, em retrospectiva a lua-de-mel deu início a uma era.
Nuno