As imagens que me restam são difusas. Tento juntar peças soltas, uma floresta ou um bosque algures, muito verde e árvores altas em todas as direcções, nós em passeio ao longo da faixa larga de terra batida. O chão agreste coberto de pedra miúda fere os pés, a gravilha entranha-se nos dedos a cada passo, os chinelos arrastam-se em protesto pelo abuso. Por mais que me esforce não me recordo das caras que me acompanhavam nem vaga ideia tenho de quantos éramos, apenas me sobra na memória a face do meu pai sereno, gigante, incansável. A presilha do elástico de um dos chinelos quebra por desgaste e deixa-me manco, procuro manter o passo num esboço de versatilidade heróica para evitar empecilhar o grupo, prendo o elástico do chinelo entre os dedos e puxo desajeitadamente pela sola. Por momentos acredito que será possível cobrir o resto do caminho assim, coxeio umas quantas pernadas, dou uns saltitos valentes apoiado só num pé, já cansado testo a firmeza da sola do pé na rispidez do solo, arrependo-me assim que sinto a pele perfurada pelo tapete de detritos biológicos e minerais em que assento o pé, e eis-me aos ombros do meu pai no instante seguinte. O mistério das recordações distantes, que parte aconteceu mesmo e que outra compomos à medida para preencher lacunas narrativas, quanto resulta de recordação genuína trazida do momento vivido e quanto nos foi permitido completar através de relatos, fotografias, filmes.
Fica indelével ainda que fictícia a tua pujança infinita pai, a salvação condoída que só a meninice atrai, o momento singular de sintonia. Como daquela vez, lembras-te pai, em que correste a pontapé uns cromos bem mais velhos do que nós que nos tinham batido já nem sei porquê, ali na praceta do califa. Ninguém se metia com o meu pai, que sabia tudo e não tinha medo de nada. Perguntava-me às vezes pela guerra, aquela lá longe em África, a das fotos divertidas com o macaco minúsculo aos teus ombros, a do corno e da bola de marfim, antes do meu nascimento. O que passaste por lá, se mataste alguém, isso das armas pesadas soava a coisa séria. Aquele homem que era tão meu tinha outras incarnações a preto e branco, outras vidas sobre as quais nada sabia. Ensaiava umas perguntas esporádicas meio a medo, apanhava do ar retalhos de conversas com outros adultos, a guerra um conceito estranhamente familiar, enleada numa saudade dorida e num orgulho ora assumido ora calado.
Muitos anos mais tarde, num dos últimos anos da faculdade, fiz uma apresentação sobre a guerra do ultramar. Escolhi um formato arriscado e pouco usual naqueles tempos, uma compilação pausada de fotos chocantes e citações de soldados, sem narrativa. A minha falta de experiência e de treino comprometeram a fluência, o som apareceu atabalhoado e descoordenado com a sequência de imagens, ainda assim o resultado foi estarrecedor. A sala muda durante largos segundos após a conclusão, o professor demorou a refazer-se do choque, colegas de lágrima no olho, nunca imaginei diziam, nunca imaginei. A tal guerra de África de que pouco falavas pai, a tal do macaco no ombro, a das mangas sumarentas que não comias, a das lagostas à fartura, foi guerra mesmo daquelas que matam a quem morre e a quem mata. Até nisso os portugueses primam pela modéstia, olha o estrilho que fizeram os franceses com a libéria, os ingleses com a índia, os americanos com o vietname, estes últimos sem qualquer laço histórico que justificasse tamanhos empenho e embaraço, até hoje analistas, políticos e sociedades debatem e argumentam furiosamente, nós dissolvemos um império com centenas de anos de história, sacrificámos uma geração de jovens guerreiros amadores mais ou menos voluntários, deixámos para trás miséria e guerra civil, e em menos de uma década o assunto praticamente morreu, substituído pela dócil revolução dos cravos e pela sucessão esquizofrénica de governos.
Voltaste diferente, diz a mãe. Como seria possível teres voltado o mesmo. Estiveste lá pai, de arma na mão. Foste rapaz inocente, voltaste homem de coração rijo. Quantas vezes pensei, teria aproximadamente a idade que tinhas quando partiste, como seria embarcar a caminho de uma guerra algures, abandonar tudo e todos sem a mínima segurança de regressar ou sequer de alguma vez voltar a ver os quem e onde que mais importam. O sufocante medo da morte e como encontrar a paz em tal contexto, como aceitar que a vida própria, a única que nos é dada, a singular oportunidade de experienciar consciência, amor, entrega, superação, tudo isso seja rendido sem condições negociadas aos humores instáveis de políticos desenfreados, subjugado aos ditames de militares alheados, qual soldadinho de chumbo empacotado. Armas pesadas queria dizer, vim mais tarde a compreender, tanques, canhões e outra artilharia de alto calibre. Estiveste lá, de arma na mão.
As mãos, essas mãos pesadas que quase me partiam os ossos quando espremias as minhas na brincadeira, que em movimentos mágicos desmontavam, reparavam, desenhavam, que gesticulavam vigorosas para te apoiar em monólogos exaltados, debates empolgados, anedotas picantes, que nos guiavam em apertadas curvas e contracurvas um pouco por todo o lado. Uma dessas curvas quase nos matou a todos. Acho que íamos a caminho da serra da estrela, noite cerrada algures numa estrada secundária. Por muito pouco escapámos às trágicas páginas do correio da manhã, por uma unha negra não fomos uma daquelas tristes histórias de verão que todos os anos se desenrolam nas muitas estradas que por todo o país carregam multidões na direcção das férias, dois adultos e duas crianças colhidos por camião em contramão, condutor do automóvel escapou à colisão mas não conseguiu evitar a ravina, ocupantes em situação crítica, camionista em fuga. Até hoje não sei como tiveste o sangue frio para controlar o carro e onde encontraste aquela nesga de terreno que nos protegeu do fdp provavelmente bêbado que ia ao volante daquele monstro. As mãos que carregaram armas pesadas preservaram mais uma vez nesse quase fatídico momento as nossas vidas.
Por essas tuas mãos caminhava seguro. Passos largos, o prazer de andar sem destino que herdei de ti, a pressa de uma partida atrasada, uma declaração arrogante ao mundo de quem nunca se rende. Pela tua mão fui e voltei. Essa tal viagem à serra de estrela que tu e a mãe organisaram em surdina para nos surpreender, foram buscar-nos ao liceu no final do dia e à saída do viaduto duarte pacheco seguiste em frente em vez de virar para monsanto, só aí percebi que algo estava diferente, que vocês tinham um plano, a chegada tardia à pensão com direito a jantar privado pós horário estabelecido, o passeio matinal pela covilhã, a subida até ao cume da serra, só faltou a neve. As travessias de verão até ayamonte para comprar caramelos, únicas experiências internacionais que tive na infância, únicas até me levares a madrid uns anos mais tarde na complexa e traumática fase da adolescência, únicas em género e feitio de todas que vim a fazer ao longo dos anos, o jogo assumido do gato e do rato com os guardas fronteiriços e a excitação do delito mais teórico do que prático numa vida de resto pautada pelo cumprimento escrupuloso, a roçar o abjecto, de regras sociais reais ou percebidas.
Não te admires que a tua veia de insurgência tenha chegado até nós por osmose ou genética. Lembras-te pai, dos jogos do benfica ao domingo à tarde, a porta 22 da pressa mil vezes repetida, cachecol e bandeira na mão a pé pela segunda circular, as filas para a compra de bilhetes em que sempre um mais atrevido tentava ataviar a espera e acabava dirigido à força de interjeições colectivas para a cauda, aquele regresso atribulado no meio da claque do sporting com pedradas e ameaças impertinentes à mistura, nem aí tive medo a sério, nem aí te calaram.
Anos antes, pouco importa quantos, o tempo esborratado pelo tempo, nós a subir para o que julgo ser o terminal do rossio, o teu banco organizou lá uma festa de natal, anoitecia e estávamos os quatro juntos, a subir a rampa, frio chuva tempo de inverno como era habitual antes do aquecimento global, outra vez memória completa embora desfocada e neste caso sem ajudas visuais, espectáculo de circo e palhaços, no final uma prenda para a Luísa e outra para mim. Não te entusiasma o natal nos dias que correm, porventura já naquela época pouco ou nada te excitava na quadra, apesar disso ficou o retrato de uma noite natalícia perfeita. A nossa família nuclear, agregada na simplicidade de uma festa elementar com exactamente o necessário, apenas o necessário como na canção, retenho os sorrisos nas caras de todos, risos soltos de antecipação e deleite, pode ser só uma impressão deturpada pela emoção ou por fazer tanto sentido no contexto de uma infância feliz. Sim feliz, essa é a palavra.
No rossio, nos restauradores, na rua do ouro, na rua dos sapateiros, na rua augusta, na praça d. pedro v, na praça da figueira, na praça do comércio, aí começava o natal. A mãe às compras de prendas para os filhos, para o marido, para os irmãos, para os cunhados, para os amigos, empregadas, colegas, professores, cão gato e periquito. A paragem obrigatória na loja das meias, que ainda hoje persiste em posição de destaque com um olho nos esquemas da rua e outro nos pombos da praça, o vaivem na calçada entre a multidão desenfreada connosco às costas, bitoque ao balcão do tábuas para recompor, já lá iam nos tempos da faculdade, mais umas piscinas para completar o ramalhete, subida aos armazéns do chiado, isto antes de se afundarem nas labaredas e darem lugar às inevitáveis cadeias internacionais, meia volta para o braz & braz com os seus artigos utilitários, nos intervalos paragens aqui e acolá, o fumo das castanhas assadas no ar, uma névoa charmosa que dava à zona baixa da cidade um encanto feérico, lojas tradicionais com donos tradicionais, tudo cheirava tão bem a café chocolate doces, montras de cores brilhantes aprumadas por gente de gosto e amor pela arte de bem servir o cliente. No final apanhar o autocarro de volta para benfica, à pinha em hora de ponta, a incógnita do tempo de espera na paragem, a confusão do trânsito pelas avenidas antigas e novas, chegar a casa e tratar dos banhos, do jantar, dos trabalhos para casa.
Sempre adoraste o natal mãe, a festa de família por excelência. Muito te custa ver e ouvir o pai abertamente desdenhar a época, resistir ao seu negativismo galopante perante o consumismo instalado, combater a resistência passivamente activa às celebrações. Não participa em nada, não dá prendas mas não recusa quando lhas oferecem, dizes num tom de condenação caramelisada pela graça que nunca conseguiste evitar achar à sistemática anarquia do teu homem indomável. No fundo sabes que no final ele vai lá estar, vai ajudar, vai surpreender, vai encher o espaço com aquela energia contagiante e aquela voz rimbombante que ecoam no espírito e preenchem o vazio na alma da gente. Deixas as ondas passar e continuas, navegas o barco para porto seguro. Em quaisquer circunstâncias, doa a quem doer, honras a tradição mais antiga do que a memória e fazes a festa. Mãe lembras-te dos poemas de natal que escreveste e nos ajudaste a memorizar, há uns redondos 30 anos atrás, aqueles que todos os primos recitaram à frente da família, quais von trapp da tugalândia, a paciência e desprendimento infinitos que nos dedicavas no meio da miríade de outras urgências que tinhas em mão, que raro é num adulto, que privilégio sempre foi ter uma mãe assim, que pena tenho de não conseguir seguir o teu exemplo.
Outras festas por razões diversas, hordas de gente lá em casa, mesas luxuriantes com comida que bastaria a um batalhão esfomeado no evchamol de um cerco de 3 meses. Os preparativos começavam nas vésperas, no dia a tensão crescia ao ponto de praticamente não podermos sair do quarto. Dezenas de pãezinhos especiais do califa enchufados com manteiga, fiambre, queijo, bolos grandes pequenos e médios, inteiros ou às fatias, cobertos ou recheados, desde os supremos duchesses fresquíssimos feitos por encomenda aos trabalhosos brigadeiros caseiros tão apreciados pelas sorridentes sobrinhas de costela madeirense, sumos de pacote e garrafa que normalmente não tinham pertença na lista de compras interna, mais uma enormidade de petiscos e acepipes mais ou menos açucarados para satisfazer o apetite da juventude residente e convidada. Fase um concluída, os miúdos despedem-se, mudança de turno, começam a chegar os clientes da noite. Os familiares e amigos do costume, paródia garantida até às tantas, mesa posta para jantar, menú com várias opções à escolha, tira uns traz outros, tudo sentado na galhofa com ganas de ser servido, excepto tu mãe. Tantos actores no palco, eu incluído, egos delicados de artista, tu nos bastidores a apaparicar vontades. No final da noite, bem depois de me ter ido deitar, a limpeza do lixo e das centenas de copos, garrafas, pratos, talheres, guardanapos, cinzeiros improvisados, espalhados ao acaso pelos cantos mais recônditos. Tudo o que vale a pena dá trabalho, dizia a tua mãe. Deve ser daí que vem esse teu estofo.
Em geral as mulheres parecem mais fortes, aguentam mais, como aquelas formigas e aranhas que suportam pesos várias vezes superiores ao do seu próprio corpo. Talvez apenas uma ilusão, uma fábula primordial para manter inalterada a ordem histórica de um mundo desde sempre convenientemente governado por homens. Homens que semeiam guerras onde morrem jovens ingénuos a troco de fotos a preto e branco com macacos ao ombro. Ou quem sabe haja mais e a força seja só o primeiro e mais aparente dos superpoderes. Tu sonhas cantar e cantas, em privado porque nunca queres incomodar. Alma de artista, sensibilidade de poeta, deleitas-te entre escrita e música e pintura e teatro e dança e que mais. Afinal a tua filha saiu a ti em alguma coisa. Sem que alguma vez o tenhas admitido, porventura até realizado tamanha a modéstia que te caracteriza, calhou-te o dom da interpessoalidade, manifestado na capacidade empática inata de observar os outros à tua volta e sentir as suas penas.
Aos dois. Quero que saibam que tenho consciência de tudo o que fizeram por mim. Sei hoje que dar vida é muito mais do que o acto biológico, é nas escolhas e nas encruzilhadas que se faz a distinção. Eu tive e tenho o privilégio fenomenal de ter começado a vida com a vantagem de vos ter como pais.
Nuno