10.6.12

cromos

Empilhados sobre a cama, esquecidos no chão, atafulhados no bolso exterior da mochila, encarquilhados nos bolsos do casaco, os cromos de futebol dominam o imaginário dos rapazes nas vésperas das grandes competições. Colados à pressa, na ânsia expectante de encontrar um tesouro no próximo pacote, escapam da mão e fixam-se nas paredes desenhadas em forma de moldura numa desarmonia estética em que uns compensam à direita o desvio esquerdino dos vizinhos e o todo ganha uma dimensão muito mais viva, muito mais humana, do que jamais seria possível numa página de figurinhas alinhadas.

Primeiro a compra, arrancada a ferro aos pais, que finjem não perceber o encanto daquelas minúsculas fotografias autocolantes de jogadores de futebol e vendem cara a renúncia às moedas soltas e esquecidas no fundo dos bolsos. Astutos, aproveitam-se do desespero dos garotos para lhes arrancar promessas de bom comportamento, esforços sobre-humanos nas escola e outras juras solenes que noutras alturas tão difíceis são de conquistar. Já eles, os mais pequenos, cruzam os dedos atrás das costas e desbobinam intenções honrosas, confortados pela confiança na boa natureza dos adultos, que certamente já terão esquecido estas combinações quando for altura de cumprir.

Com o investimento inicial a caderneta ganha peso e densidade. À medida que as caras plastificadas ocupam disciplinamente os seus devidos lugares, os pequenotes incham de orgulho por possuirem os seus heróis gladiadores e vibram na antecipação da inveja indisfarçada dos colegas quando chegar o momento das trocas. Fazem listas, contam espingardas, apuram conquistas, angustiam-se perante a exigência da tarefa e concluem precisar de mais apoios parentais - conhecidos na gíria por paitrocínios - para terem quaisquer hipóteses de sucesso. Embalados pela esperança de novas vitórias mas assombrados pelos fantasmas das rondas anteriores de negociação, desenham estratégias inovativas de vendas, empenham poupanças pessoais, descontam créditos futuros e desfazem-se em benévolas intenções perante familiares e conhecidos.

Pouco a pouco acumulam-se os repetidos, fonte de frustração ao abrir as carteirinhas mas que mais tarde tão úteis se revelam para a troca com outros coleccionadores. Em pouco tempo a pequena amostra de duplicados transforma-se numa montanha de autocolantes que forma dupla com a lista de exemplares em falta e acompanha em permanência o coleccionador. Tudo tem que estar permanentemente preparado para a troca, o verdadeiro momento-chave das colecções de cromos. Sem regras expressas ou pré-definidas, o processo tem contudo uma linearidade temporal fascinante. As colecções mudam, as gerações sucedem-se, as geografias variam, mas a essência da troca mantém-se inalterada. Pequenas idiossincracias à parte, os coleccionadores reconhecem de forma instintiva a lógica da troca de cromos e adoptam inconscientemente os mesmos comportamentos ancestrais que conduziram inúmeras gerações anteriores a triunfos gloriosos na arte do coleccionismo.

À medida que se aproxima a competição, aumenta a pressão para completar a colecção. Em simultâneo, não obstante a compra compulsiva de novas carteirinhas e os resultados brilhantes nas trocas, a dificuldade para obter os cromos em falta cresce exponencialmente. Em mercados de trocas mais sofisticados, os cromos têm cotação individual e os exemplares mais raros valem múltiplos - por vezes dezenas - dos comuns. Mesmo nos ambientes mais simples, em que por princípio prevalece a amizade e todas as unidades têm valor idêntico, a competição pelos mais raros é feroz e suscita com frequência dilacerantes conflitos de interesse. Todos querem ser o primeiro a acabar, ninguém quer ficar para trás na corrida ou deixar passar a competição com a caderneta incompleta. Imagine-se o pesadelo de assistir a um jogo sem poder consultar toda a informação sobre os jogadores em campo.

Consciente dos efeitos potencialmente devastadores de tal privação, a Panini - empresa responsável por estas colecções - inventou um mecanismo que permite aos coleccionadores encomendar os cromos que faltarem para completar a caderneta, com quantidade limitada a um máximo de 50. Para além desta, há outra escapatória bem conveniente para o coleccionador desesperado: a aquisição em feiras, lojas especializadas ou bancas de rua de cromos individuais, escolhidos a dedo a troco de um pequeno valor acrescentado.

Quando eu era pequeno o meu pai só me levava a estas bancas quando me faltava uma quantidade muito pequena de cromos para acabar - não consigo recordar-me ao certo mas tenho ideia de serem números inferiores a 10. Durante semanas trazia-me carteirinhas de surpresa, sem avisar e sem me permitir criar expectativas. Depois deixava-me trabalhar nas trocas até achar que eu já merecia acabar. Aí sim, bem no fim, quando já ninguém na escola estava a trocar pois todos tinham acabado havia muito, íamos juntos comprar os que faltavam. Adorava esses momentos. Ficava tão orgulhoso da minha caderneta que tanto me tinha custado a completar. Comparado com os meus colegas, que compravam caixas inteiras de carteirinhas de uma assentada, ficava sempre para trás. Mas nunca me importei. Sempre achei que a minha era a maneira certa de fazer uma colecção.

Isto tudo a propósito da caderneta do Diogo, amplamente patrocinada pelos avós. Para além das incontáveis carteirinhas que o menino recebeu por correio e que lhe permitiram progredir na colecção com grande rapidez, na semana passada foi brindado com um pacote que continha nada menos que 178 cromos seleccionados da sua lista. Graças a este impulso extra, de uma assentada completou várias equipas, ficou com apenas 38 unidades em falta e ganhou uma série de repetidos fantásticos com os quais poderá facilmente atrair os restantes através das trocas. Está radiante, como é fácil de imaginar. O pai confessa que se divertiu a ajudá-lo na colagem mas guarda sentimentos mistos - que colecção é esta em que o sucesso chegou por magia?

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Nuno e Dioguinho!

Dissertação sobre um processo mágico de completar uma caderneta de cromos num « abrir e fechar de olhos!». Leitura hilariante apesar de, por detrás, se esconder uma criticazinha subtil a tanta facilidade... Não tão mágico foi «Der Prozess» de Frank kafka, cujo personagem foi preso por um incompreensivel processo de um crime não revelado! No nosso caso, o crime é explícito: Avós que facilitam descaradamente todo o suposto processo do nosso coleccionador Diogo!
Tu, filho, que passaste as passinhas do Algarve para completares as tuas cadernetas quando eras catraio, agora ajudas o campeão a colar os cromos, tal a quantidade... O que nos rimos, eu e o pai,ao lermos a tua versão da história!!!Pai sofre e avós exageram... Beijinhos xxxxx