11.6.12

nós 4

Virá o dia em que os nossos filhos terão crescido, seguido as suas vidas, em que tomarão decisões sem nos consultar e olharão para nós como nada mais do que uma segurança emocional de recurso. Em total domínio do ambiente que os rodeia, julgar-nos-ão afastados da realidade, inadaptados às novas tendências, desinteressados das correntes emergentes. Desprovidos de utilidade prática para a sua integração entre pares, incapazes de compreender os desafios com que se deparam, seremos os actores secundários das suas vidas. Guardarão porventura uma ideia difusa do que lhes ensinámos e de tudo o que fizemos por eles enquanto cresciam. Talvez tenham até consciência da nossa contribuição para muito daquilo em que se tornaram. Mas vão certamente baralhar os factos, interpretar abusivamente esparsas memórias, confundir realidade com imaginação e julgar-nos à luz do que serão no futuro, sem tentar sequer perceber a forma de pensar na altura dos acontecimentos ou o contexto em que esses se produziram.

O dia virá em que os melhores tempos passaram. Olhando para trás, sonharemos acordados com a vida que vivemos. Agarrados às recordações, lamentaremos não ter gozado mais intensamente cada abrir e fechar de olhos, cada respiração, cada batida do coração. Recriminar-nos-emos então pela falta de paciência, pela ambição pessoal, por cada segundo desperdiçado a agradar a terceiros. Perguntar-nos-emos como fomos tão cegos, como deixámos o tempo fugir-nos entre os dedos, como foi possível não nos termos apercebido que deitávamos fora o melhor da vida. Aí dirá uma voz, interna ou exógena, que não foi bem assim, que tínhamos que trabalhar, que muito do que fizemos foi sobretudo por eles, que eles acabariam por nos agradecer um dia. E abrindo os olhos veremos meninos em forma de adultos, com os mesmos gestos, as mesmas vozes, os mesmos olhares que testemunhámos ao longo de décadas que se esgotaram num sopro.

Mas estes meninos adultos já não precisam de nós, a sua atitude é bem diferente daquela que nos habituámos a esperar. Já não sobram sequer as lutas e as patadas da adolescência, que tantos cabelos nos esbranquiçaram. Quem diria que viríamos a sentir falta desses tempos. Agora resta uma convivência cordial, com tentativas nem sempre bem sucedidas de respeito mútuo. Os tais agradecimentos ficam mudos, às vezes por vergonha mas em grande parte por falta de reconhecimento. Não que os quiséssemos - mais não foi do que a nossa obrigação - mas a intenção seria apreciada. Como pode um pai assistir calado aos erros de um filho, por mais crescido que este seja. Até estou disposto a aceitar que não percebo tudo o que se passa nos das de hoje mas já corri mundo, cometi os mesmos erros, vi passar gerações que desajeitadamente os repetiram, tenho algo a dizer. Porque não me ouvem?

Esse tempo está longe, repito baixinho para me tranquilizar. Por enquanto eles estão aqui ao pé de nós, são pequenos e dependentes, precisam da nossa ajuda e dos nossos conselhos. Por que raio os incentivo então a crescer? Que masoquismo é este que me impele a mandá-los para a frente e a ensiná-los a desenrascarem-se sem nós? Se prevejo este cenário que me assusta, devia guardá-los junto de mim, resolvendo todos os seus pequenos problemas, participando nas suas actividades, tentando ser da idade deles. Mas não o faço pois tal não me é permitido. Essa não é a função dos pais. As crianças precisam de pais que assumam a sua idade e se comportem como tal. Para o resto têm os amigos, os pares. Em termos holísticos é abusivo alegar que a vida é cruel, que temos pouco tempo - nunca vivemos tanto, nunca a infância foi tão prolongada, nunca os pais conseguiram dedicar tanta atenção aos filhos. Mas suponho que seja sempre insuficiente, que queiramos sempre mais.

Revendo a nossa história conjunta invade-me uma enorme realização. Acredito que vivi a fundo a maior parte dos momentos e que acompanhei de perto o seu crescimento. Estou convencido que mais não poderia ter feito, que qualquer acrescento teria sido excessivo e degenerador. Uma criança não precisa de pais sufocantes ou sufocados. Para poder dar-lhes o amor, a educação, o sentido de direcção e a estrutura que lhes são devidos, os pais têm que sentir-se pessoalmente realizados, guardar sonhos e ambições individuais e conservar uma relação saudável enquanto casal. O equilíbrio é delicado e exige lucidez, sobretudo nos momentos de maior tensão ou agitação. Longe de tudo e de todos, consegue-se assegurar maior unidade familiar mas nem sempre é possível encontrar espaço para a afirmação individual.

Tudo começou há 12 anos, numa manhã de setembro no final do século passado, num deslumbrante palácio lisboeta convertido em centro corporativo. A conversa tensa desse dia deixou marcas ilegíveis mas duradouras. O remoínho teve origem num encontro improvável mas inevitável e a partir daí tomou conta das nossas vidas. Temos o privilégio de uma vida plena, com algumas preocupações mas muitas mais alegrias. Tudo o que começa acabará um dia mas tenho esperança que o futuro não seja assim como o imagino, que esta imagem que pintei seja apenas uma interpretação desajustada daquilo que vejo de fora, que aquilo que se constrói ao longo da vida em conjunto tenha um impacto no longo prazo. Seja como for, concluo que não me resta alternativa. Não vou tentar metamorfosear-me ou parar o tempo - em ambos os casos estaria condenado ao fracasso.

Nuno

1 comentário:

Berta disse...

Filho Nuno!

Essa câmara fotográfica!!! Se eu não te conhecesse e não soubesse a tua idade, julgaria que este texto fora escrito por uma pessoa de idade avançada e com a maturidade decorrente de uma vida já muito vivida. É verdade que já correste algum mundo, mas só tens 35 anos...
O modo como «olhas» e «imaginas» o sentir da geração anterior à tua, a dos teus pais, numa fase mais avançada da vida, pode ser tremendamente verdadeiro ou não, mas seguramente cru e racional.
Tu, como filho, «julgas-nos afastados da realidade, inadaptados às novas tendências, desinteressados das correntes emergentes», e apenas uma segurança emocional de recurso. Se calhar, alguns de nós seremos tudo isso ou apenas umas partes do todo. E, o que nos resta é «uma convivência social, com tentativas nem sempre bem sucedidas de respeito mútuo»! Uau! A mim resta-me muito mais para além disso... Mas é incrível como o que parece pode ser, pois da minha perspectiva, é assim mesmo por exigência da geração anterior que nos flanqueia o passo e estabelece os limites! Se calhar, bem???
Como pai, tudo o que sentes e afirmas está tão próximo da realidade. Os filhos interpretam abusivamente memórias, sem tentar perceber a forma de pensar na altura dos acontecimentos ou o seu contexto. Virás provavelmente a lamentar ter perdido tempo com as tuas ambições pessoais ou por o ter desperdiçado a tentar agradar a terceiros. Mas, filho, só se te anulares como indivíduo e abdicares da tua vida pessoal, social e profissional! Uns mais do que outros, nuns ou noutros aspectos,tentamos dar resposta a necessidades e expectativas naturais e humanas. O segredo está no equilíbrio sensato e subtil entre as duas forças. Olhando o passado, e isso tem a ver com a minha sensibilidade e as minhas prioridades, penso que foi para mim mais importante privilegiar a unidade familiar em detrimento de grandes afirmações individuais ou relações com terceiros. Mas cada pessoa procura encontrar as suas escalas de valores. E tenho quase a certeza que, como tu concluis e bem, «aquilo que se constrói ao longo da vida em conjunto, terá seguramente impacto ao longo da vida»! A prova disso está nos inúmeros exemplos de pessoas que levam vidas terríveis assentes em passados desconstruídos e estruturas familiares desligadas.
Quem investe como tu nos pequenotes, não tem nada a temer... Beijinhos
PS. Lê e apaga!