Apercebi-me agora
que não postei nada sobre o meu Caminho a Santiago de Compostela. Mas merece
que seja escrito, afinal este blog também é sobre mim.
Há muito que queria
fazê-lo. Há muito também que falava com a Marta sobre o tema. Este inicio de ano,
apesar de não ser muito meu hábito, tinha-o listado objectivo. E assim
foi, andei (andamos) indecisa(s) sobre quando fazer e acabou por ser por um empurrão
do Grandalhão que me disse, “marca uma data no calendário e logo nos ajustamos”.
A data coincidia com as férias (e estágio) da Makuks que assim estaria entretida
e acompanhada.
O Caminho principia-se
bem antes do primeiro passo: começa com a ideia, o desafio, o ultrapassar das dúvidas,
a decisão de ir. E depois com planeamento e preparação. O que me impeliu a
faze-lo? A aventura, a jornada, a vontade de se fazer aquilo que tantos fizeram
ao longo de um milénio, a recolha de material, a aprendizagem, a experiência,
a vontade de me desafiar. “Walk the talk”.
Fundamental na preparação
é o equipamento. Como ouvi alguém dizer, “não há mau tempo, só mau
equipamento”. A preparação faz-se também física e mentalmente. Neste ultimo
caso, e importante planear mas ao mesmo tempo manter a mente aberta porque por
muito planeamento não há como controlar o tempo, as encruzilhadas e percalços,
as pessoas com que nos cruzamos, a sucessão de acontecimentos. Podemos planear
o que quisermos, mas só fazemos o Caminho, percorrendo cada passo dele. Por
isso agilidade e resiliência para ultrapassar desafios e a esperança de ganhar
experiencia e, quem sabe, alguma sabedoria.
Na quinta-feira,
7 de Abril, viajei de Amesterdão para Lisboa. As grandes coisas começam com inícios
simples, e portanto claro que este Caminho tinha de se abrir com o Capitulo 64
do Dao de Jing (ainda que tantas vezes erroneamente atribuído a Confúcio): “Um caminho
de mil passos começa com um simples passo”.
O ensinamento e
que ate o mais longo, difícil, ambíguo ou trabalhoso dos percursos que nos
levam ao destina (qualquer que ele seja), começa com a manifestação da intenção
e um ponto de partida, algo que começa com um movimento ou passo. Isto não é uma
ideia original, nem tenciona ser. Não era também uma ideia original fazer o Caminho
– foi feito por milhões de pessoas, ao longo do tempo, desde o século IX
depois de Cristo. Não era de originalidade que estava a procura, antes de seguir
esse apelo mágico de fazer um percurso milenar que se tem
mantido por gerações e gerações. Aberta
a esse mistério que levou todos os outros antes de mim a fazê-lo.
O Caminho de
Santiago de Compostela e, na realidade, uma rede de percursos de peregrinação cristã que desemboca
na Catedral de Santiago de Compostela, onde os restos do Santo estão guardados,
no noroeste da Península Ibérica. Essa rede é composta por quase
1.500 quilómetros, e abrange uma rica herança histórica, religiosa e cultural
criada para responder às necessidades dos peregrinos, incluindo
catedrais, igrejas, hospitais, albergues, pontes, caminhos percorridos desde o
seculo IX. A rede é considerada Património Mundial desde 1993 pela
UNESCO.
Portanto o meu começo
foi Amesterdão para Lisboa. Com sapatos top performance (que foram fundamentais
para uma top performance: desenhados para trilhos, leves, e impermeáveis para
que os pés estivessem sempre secos apesar das potenciais chuvas de Abril). Saí de Amesterdão,
com a minha nova BFF (a mochila), uma mala para deixar em Lisboa e o gato Mel.
Lembro-me de receber olhares curiosos de algo esta “”off” com esta personagem
com uma mala de hiking às costas, uma de viagem e um gato. Olhares que me
divertiam ao mesmo tempo que sentia borboletas no estômago. Sei que conto com
o apoio da minha tribo para esta aventura, e ainda assim…
O embarque no avião
atrasou-se porque a tribulação estava a chegar atardada de Londres, e não se
pode iniciar o embarque sem a tripulação no avião. A vida a acontecer, não
importam os planos e agendas. Não se pode controlar os acontecimentos, ou sucessão
deles. É preciso aceitá-los – algo que sempre tive alguma dificuldade em
fazer –não é afinal o nosso papel combater a entropia que nos rodeia?
Olhando para trás,
o meu caminho tem sido tudo menos linear. E isso agrada-me de sobremaneira, ter
a oportunidade e possibilidade de continuamente aprender, desenvolver,
reinventar-me. Tenho plena consciência que tudo isto é possível, fruto da aliança
que fiz com o Grandalhão. Muito para além e melhor do que o meu sonho mais
ambicioso!
E claro, as
minhas conquistas mais audazes e o meu melhor desempenho personificado nos
nossos dois filhos. Nele sempre vi o meu cavaleiro de luz e príncipe do mundo e
nela a manifestação mais poderosa e selvagem da natureza. Reflectindo nos últimos 20 anos da minha vida,
que coincidem também na sua vasta maioria com a minha vida profissional, tem
sido muito acerca deles. Num amor incondicional. Assegurando-me que podiam
crescer em segurança, saudáveis. Seres humanos gentis, funcionais e autónomos.
Não foi sempre fácil.
Especialmente tendo começado em Portugal com uma rede e apoio que desapareceu
com a nossa mudança para a Holanda. Eu quebrei.
Como prevíamos, os nossos filhos estão a largar o ninho, de
forma gradual mas determinada. E apesar de serem sempre parte da nossa vida, a
verdade é que se avizinha uma nova fase. Reinventar-me, era de certa forma uma das intenções
mais puras para esta minha viagem.
Na viagem ia
acompanhada da Marta, uma querida amiga de longa data e que me tem acompanhado
em todo este processo. Com ela sonhei e planeei esta viagem.
Este marco pós-covid.
Este quebrar da estagnação (e consequente fedor) do que é estar parado. Fico
fascinada com a interpretação de papéis e invenção de identidades diferentes ao
longo da vida – sempre uma descoberta de tantos interesses, do que somos, e
daquilo que nos projecta e/ou condiciona.
A viagem, como são
todas, foi feita em etapas. De conexões: comigo, com a natureza, com as pessoas
à minha volta e que ia encontrando pelo Caminho. Tudo parecia simples ali:
levantar-se cedo, sair, caminhar sempre seguindo as setas amarelas indicadas
com uma frequência e regularidade tranquilizadora. Uma única vez me perdi no Caminho
– apesar do Grandalhão e a Makuks gozarem comigo e preverem que me iria perder
muitas, de tal modo mau é o meu sentido de orientação.
A viagem começou com
a Marta e foi tranquila até passarmos o Rio Minho. Pouco depois
disso, a Marta teve uma lesão que lhe dificultou grandemente o movimento do
joelhos. Vi que tentou com todas as forcas continuar mas os joelhos não
permitiam e acabou por decidir regressar a Lisboa. Eu decidi continuar. Os dias
anteriores tinham sido determinantes para ver que é seguro e ter uma ideia
de como era. Com alguma adaptação ao que é ir acompanhada ou sozinha. O foco de
chegar ao destino da etapa era grande em mim. Saía cedo, determinada, e
raramente parava – pausas bio - até chegar ao destino, que era regra gera
inicio da tarde. Chegar cedo ao albergue permitia ter um bom lugar para
descansar (que e essencial), ser uma das primeiras (se não a primeira) a tomar
banho em instalações limpas (antes de começar a chegar toda a gente), descansar
e tratar os pés, espreitar a localidade do alojamento, combinar algo para
jantar e regressar cedo porque às 10 da noite as luzes dos albergues
apagam-se e tudo descansa.
Sozinha
caminhava, encontrando esta ou aquela pessoa ou grupo. Tudo solidário. Tudo
atento também por me ver sozinha – as pessoas preocupam-se genuinamente – ia fazendo
contactos com quem me cruzava a noite e que iam “checkando em mim”.
É engraçado, foram 10 dias e no entanto as conexões
e a solidariedade de estarmos todos ao mesmo, intensificam-se. Sem a Marta,
fiquei mais aberta aos outros. Não que estivesse fechada mas era diferente o
meu foco. Acabei por sincronizar muito
com a Riita (Finlandesa veterana de caminhos, com idade para ser minha mãe),
que se tornou a minha mãe de caminho. O que eu recebia, retribui a Marie (alemã
jovem em doce) e ao Jinu (um ainda mais jovem adulto sul coreano que decidiu
embarcar em 6 semanas na Península Ibérica e começar com o Caminho) – eles foram
os meus filhos do Caminho. Cada uma fazia o seu percurso, a seu ritmo, e encontrávamo-nos
ao fim do dia. Íamo-nos checkando uns aos outros, motivando, inspirando.
Outros
companheiros de Caminho foram as gémeas Francisca e Laura e a Daniela – jovens
mulheres incríveis que faziam a caminhada e que acompanhava por vezes. E a São,
irmã e marido, de Aveiro e Pedrógão. O Sérgio,
um espanhol fisioterapeuta com quem me cruzava bastante. Um casal espanhol, ele
da Galego, ela Madrilena, a prepararem-se para uma imigração para o Canada. Um
Checo super doce, Daniel. E tantas outras pessoas. Todas agradáveis, sempre: “Bom
Caminho”, ouve-se vezes sem conta ao longo do trajecto.
Curiosamente os
dias foram passando por mim sem peso (apesar da mochila ter sido sempre
carregada por mim). Não tive uma bolha que fosse para contar a história –
era meio estranho ver toda a gente – toda – à minha volta a
debater-se com bolhas, calos, lesões, dores de costas, unhas a cair. E eu,
nada. Enfim, as pernas cansadas ao fim do dia, e as costas a sentirem imenso
alivio quando tirava a mochila mas nada mais. Na realidade, penso que os meus pés
estavam mais macios no Caminho, tal o cuidado que lhes dava.
O último
dia foi o mais difícil para mim. Não sei porquê mas a chegada a Santiago
foi especialmente dura – e ao chegar irrompi num choro convulsivo e emocionado
na praça. Senti-me pequena. Sozinha. O sucesso do Caminho é feito por cada passo e escolha
do trajecto, e também pela companhia. Estive sempre acompanhada ao longo do
Caminho mas sozinha à chegada. As pessoas foram chegando e celebrando e
muitas se emocionavam também.
Tomei uma cerveja
com o Jinu que se despediu de mim com uma paciencia infinita a espera da
Compostela, e uma cerveja e um bilhete de obrigado pelo apoio. Vi a Riita ao
jantar e assisti a uma parte da missa das 10 da noite.
No dia seguinte, cruzei-me
com o lendário Andy – um dinamarquês que criou e gere o App CaminoNinja que
usei no Caminho. Há anos que a vida dele e caminhar e actualizar o App. Despedi-me
da Riita que se emocionou na despedida, e fui com a Marie que partia para o
Porto também.
Eu segui para Lisboa.
E depois Amesterdão. Num regresso de terraplanagem tranquila.
O Norte de Portugal
é lindíssimo. A Galiza também. Muito verde, muita agua. Muitas flores e pássaros
e pessoas habituadas a ver toda a sua vida peregrinos no seu Caminho.
Ultreia!
Patricia