30.4.20

Makuks - relatório de Primavera 2019/2020


Média de 9.46 em 10, não é para todos, mas é a da nossa Makuks neste relatório de Primavera e incluindo os comentários do seu trabalho durante o confinamento. Não é o vírus que esmorece a sua vontade de aprender e a qualidade dos trabalhos que entrega. 
Que desapareça rápido, para poderes ir brilhar para outra escola, minha estrelinha.


Mamã muito babada.

25.4.20

Cravo vermelho


Em confinamento faz-se pão, fazem-se bolos, e novos cozinhados.


Rememdam-se as meias rotas, dá-se um pontinho no que estava descosido e reforçam-se botões.


Plantam-se, em vasos, tomates, plantas aromáticas e árvores que darão o fruto, a sombra e a madeira do amanhã.


Cortam-se os cabelos dos homens da casa.


Alteram-se os horários. Acorda-se mais tarde. E vai-se tarde para a cama.


Quando nos fechámos em casa, há 6 semanas atrás, nas árvores da rua viam-se ramos despidos e os prédios do outro lado da rua.


Agora, as copas das árvores são uma explosão de verde claro, e nelas, as folhas dançam embaladas pelo vento. Quase não se veem os prédios do outro lado da rua.


Sonha-se com as férias passadas em sítios exóticos e distantes. Com o Oceano. Com o sorriso e abraço dos nossos.  


Luta-se contra o instinto natural de planear para lá desta semana, para lá de hoje. E luta-se por, ao conseguir fazê-lo, não se deixar desanimar, sem esperança.


Hoje é 25 de Abril. Toda a minha vida este dia foi símbolo de liberdade. Hoje, mesmo que tenha a liberdade de expressão, não sabe assim. E questiono a liberdade de expressão de alguns, irresponsáveis, criminosos.


E não consigo evitar de pensar em como vai ser daqui para a frente? A civilização, como a conhecemos, inevitavelmente será mudada.


Digo-me, ao olhar pela janela, que o verde das copas das árvores é um sinal de esperança.


Como mudar para o melhor que a humanidade tem?


Patricia

19.4.20

à Patrícia


ao fim de tanto ignorar, finalmente reparei
nas árvores que miram à nossa janela
que pensam, que observam lá fora
enquanto esperam pelo raiar do sol

talvez vejam como eu passar as gentes
ouvindo as conversas dos passeantes
julgando sem querer o que escarra
a que grita e aqueles que nada fazem

não parecem ter pressa, ânsia ou nervo
estão como só os sábios, estando
intocadas pela universal angústia de ser
indiferentes ao chamamento do mundo

quem lhe cuida, tão vulneráveis que são
vivas estão, sentientes e conscientes até
quem lhes ouve as silenciosas preces
e atende com cuidado e desprendimento

chega então uma alma radiante, pairante
sorriso sereno repleto de intensa luz
mãos de amor genuíno afagam o verde
as árvores à janela gemem de prazer














Nuno

12.4.20

pensamentos covid

De que mais haveria de falar nesta fase em que tudo e todos se concentram no malvado bicho? Do tal covid versão 19 pois claro. Não para tentar adivinhar o futuro ou especular sobre as implicações sociais e financeiras da crise, a isso já tantos intelectuais das artes mansas se dedicam com recém-descoberto talento e entusiasmo orgiático. Venho tão somente registar ínfimas observações de cariz particular, para mais tarde reler com saudade ou referenciar a gerações sucessoras que possam por falta de interesse questionar a gravidade das penas que passámos.

Para nós enquanto família, a crise começou na semana de 24 de Fevereiro. Estávamos nos Estados Unidos, mais precisamente em Portland numa viagem de familiarização e preparação para a mudança prevista para este Verão. Os filhos estavam ambos de férias mas só a Catarina viajou connosco. O Diogo vai para a universidade no final deste ano escolar e preferiu ficar em Amesterdão a gozar a tranquilidade de uma casa vazia e o pouco tempo que lhe resta com os amigos. Durante essa semana estivemos em contacto próximo com uma enorme quantidade de pessoas, desde diversos alunos e professores nas escolas que visitámos aos vários agentes imobiliários na ronda do mercado, dos funcionários da agência bancária onde abrimos uma conta aos meus milhares de colegas no campus mundial da empresa, dos passageiros dos aviões de ida e volta aos hóspedes do hotel onde nos alojaram. Se qualquer um de nós ou dessas pessoas estivesse infectado, o potencial de propagação seria gigantesco. Sete semanas passadas, podemos concluir que não havia ainda contágio nessa zona naquele período ou que tivemos infecções assintomáticas ou com sintomas moderados. Lembro-me de ter acordado um dia algures no princípio de Março com tonturas, o que nunca me acontece, e de ter passado a manhã com essa sensação. Tal era a falta de consciência que nem me ocorreu que pudesse ser o vírus, pensei que fossem ainda efeitos do jet lag.

Já se ouvia falar com certa regularidade no vírus e na perigosidade associada, embora fosse na altura apenas uma ideia remota como tantas outras a que infelizmente nos habituámos, provindas de cenários de guerra ou de contágios prévios de marcas exóticas como SARS, gripe asiática, febre das vacas loucas e muitos outros. Eu tinha inclusive colegas residentes na China que foram relocalizados para evitar o surto e me relatavam cenários de horror, só que a sobrecarga de informação era tal que não me consciencializei do potencial de propagação até as notícias da explosão em Itália encherem as páginas dos jornais. Ainda assim, o nosso nível de preocupação era diminuto dada a narrativa dominante de baixa taxa de mortandade, ameaça agravada para os mais idosos e similitudes com uma gripe normal para todos os restantes. Foi apenas por precaução logística que decidi voltar para Amesterdão com a Patrícia e a Catarina no final dessa semana, em vez de ficar mais uns dias como tinha programado - não queria correr o risco de fecharem fronteiras e ficar deslocado sem visto e sem seguro de saúde no pior dos cenários. Ainda hesitei durante umas horas, temi que pudesse ser entendido como um gesto de cobardia num líder de quem se esperaria coragem para encabeçar as tropas e defrontar o temível vilão. Finalmente realizei que, dadas as características únicas deste inimigo, também as tropas beneficiariam mais de um exemplo de prudência visionária do que de destemor tresloucado. Assim foi e todos agora cumprimentam o aparente presságio.

Na semana seguinte retomámos rotinas como se nada fosse. Resolvi trabalhar de casa por respeito ao meu sucessor na função aqui na Europa, não por receio de contágio. Prova disso é que todos os dias me levantava às mesmas horas que o resto da malta e ia trabalhar para um café algures na vizinhança. A Patrícia ia para o escritório sem hesitações e a nossa gente jovem seguia para a escola na carrinha, apertada entre a miúdagem como de costume. Foi só ao fim da segunda semana de aulas depois das férias que a escola decidiu fechar, em coerência com o resto das escolas europeias. O último dia de aulas presenciais foi sexta-feira 13 de Março e nesse dia ainda foram e voltaram nas tais carrinhas apinhadas. Se já havia gente infectada nessa altura, e tudo indica que assim era, houve ampla oportunidade para espalhar a sorte entre as múltiplas famílias usuárias do serviço de transporte. Por pura coincidência, se tal coisa existe, só ouvimos falar de um caso na escola inteira, um rapaz amigo do Diogo que não anda nestas carrinhas. A estatística tem destas manias perversas. Se a memória não me atraiçoa, fomos finalmente convencidos pala decisão da escola e pelas diversas comunicações do governo holandês a tomar as precauções que a situação exigia e ficar por casa a tempo inteiro.

A combinação com a chefia lá no emprego era que faríamos uma mudança gradual para Portland. Tive que repetir umas quantas vezes de seguida a lenga lenga da escola da Catarina, da universidade do Diogo, do trabalho da Patrícia. Acordou-se então que eu assumiria oficialmente a nova função em Abril e que compensaria o afastamento com viagens regulares à sede, até estar tudo resolvido deste lado e podermos todos mudar de armas e bagagens para terras yankees. Em termos práticos, isso significava levar vidas paralelas cá e lá durante três a quatro meses, duas semanas à vez de cada lado, e um estado permanente de jet lag e exaustão. Já o tinha feito havia três anos durante 10 meses, achei que seria perfeitamente suportável. Importante era assegurar a função e aplacar os eternos fogos políticos que deflagravam nos bastidores. Na cultura corporativa, tal como na militar ou na desportiva, o sacrifício pessoal é um símbolo de dedicação à causa comum e lealdade à bandeira. No meu ambiente específico, isso revela-se na disponibilidade e assiduidade tempestiva e física. Fora da vista, fora do coração. Depois de sete anos na empresa, conquistei esta nova posição porque no final do ano passado apanhei um avião para Portland sem qualquer razão legítima e marquei reuniões com os decisores sem propósito que não fosse a minha auto-promoção.

É um mundo privilegiado, incestuoso e hermético. A incessante propaganda externa e interna legitima a alucinação colectiva de auto-importância absoluta com base na relevância fictícia da convenção. Títulos majésticos, salários luxuosos, ambientes de trabalho sublimes, festas sumptuosas, tudo desenhado ao detalhe para assegurar produtividade máxima e empenho incondicional. Todos os aspectos da realidade são afincadamente manicurados, numa minúcia só observada nos mais dotados artesãos. Nada é deixado ao acaso, tudo conta para a construção de uma imagem de pujança. Há cuidado com todos, embora com uns quantos em particular. A curva da remuneração é exponencial. O erro é tolerado, diria até encorajado desde que partilhado, os únicos crimes sem perdão são a deslealdade, o deleixo e a velhice. Sim a velhice, como se fosse escolha ou enfermidade. Numa indústria obcecada com a juventude, velhice é sinónimo de irrelevância. Não há atletas de competição activos a partir dos quarenta anos, apesar de uns quantos exemplos recentes poderem sugerir uma mudança de paradigma nesse capítulo. Não se vê modelos nas passadeiras ou nos cartazes para lá dos trinta e cinco, embora seja em geral tão difícil perceber a idade de quem navega nesse mundo. Gente famosa é jovem, ágil, atlética, sobretudo quando já deixou de o ser. A ânsia da eternidade, o terror de uma vida sem significado ou lembrança. Ego, maldito ego. O virus pôs tudo isso em questão e baralhou as certezas de tantos futuros. A mim, apanhou-me na primeira das muitas viagens que me preparava para fazer, remetendo-me implacavelmente à insignificância. 

Aqui fiquei, aqui ficámos todos. Os quatro fechados num apartamento em Amesterdão sem ter para onde ir. Em nosso redor, um plasma de ameaças invisíveis e inimigos potenciais. As pessoas, os animais, a comida, o próprio ar que se respira. Tudo constitui perigo e deve ser evitado. Sobra água e sabão, lixívia, álcool. Só os químicos nos salvam de nós próprios. Isso e uma saúde de ferro. Todos contam espingardas, tentando entender a que grupo de risco pertencem. A hipocondríase e todos os seus primos revelam-se com fúria, bem mais infecciosos do que o vírus. A psicologia das massas enquanto metafenómeno e a importância de uma mente sã. A única fuga possível é para dentro. Num universo em que a mudança é a única constante, em que até essa se metamorfoseia aleatoriamente, resta apenas procurar a paz e a aceitação dentro de si próprio. Não há realidade para além de nós, só a nossa interpretação importa. Aqui estamos os quatro fechados num apartamento em Amesterdão. Todos bem de saúde, sem preocupações financeiras, com acesso a água corrente e comida fresca, em paz e segurança, inseridos numa sociedade funcional, entretidos por uma vasta biblioteca e infinito conteúdo digital, ligados ao mundo por acesso digital de alta velocidade, com direito a passeios sem restrições, até o sol nos brindou com a sua luminosidade muito para além do que é costume nesta altura do ano. Esta vida que agora levamos só desmerece em comparação com outra qualquer imaginária sem espinhos.

Uma surpresa bem agradável tem sido o comportamento impecável dos nossos adolescentes. Depois de várias semanas em confinamento, mantêm-se leais às recomendações e fisicamente afastados dos amigos. Isto quando todos sabemos que tantos outros das suas idades se passeiam descontraidamente por parques e cidades, organizam festas temáticas com dezenas de participantes concentrados em quartos de hotel, ou até furam bloqueios nas cidades com restrições mais estritas. Típico da juventude poder-se-ia dizer, sobretudo tendo em conta que os números divulgados pelas autoridades de saúde confirmam as primeiras impressões que o risco de sintomas graves é muito baixo entre os mais jovens. Não admira que se sintam invulneráveis e, para muitos talvez pela primeira vez, aproveitem para se emancipar e exercer dominância numa sociedade que tantas vezes os infantiliza e lhes corta as pernas quanto tentam correr. É a lei natural pensarão porventura, a ditadura do mais forte, os velhos que se resguardem e nos deixem tomar conta disto. Consta contudo que o tiro pode sair pela culatra porque o virus não é tão discriminatório assim e também colhe entre os segmentos juvenis. Casos raros mas reais que ensombram a postura arrogante e desafiadora daqueles mares de gente pueril que encheram as praias durante as festas primaveris e logo a seguir correram para casa dos papás para infectar o agregado familiar e zonas circundantes.

Alheios a tudo isto, o Diogo e a Catarina têm sido exemplares na atitude e na disposição. Diria até inspiradores, pela delicada maturidade que aplicam a todas as interacções e à vasta gama de interesses que perseguem. Xadrez tem sido a principal obsessão do Diogo. Entre apps no telemóvel, jogos multiplayer no computador contra uma comunidade anónima de aficionados, conferências digitais orquestradas pelos grandes mestres da disciplina e torneios virtuais com colegas durantes as lições online da escola, está a tornar-se num jogador de eleição com domínio de uma variedade de movimentos impressionante. Vai alternando isso ao longo do dia com os chats com os amigos, exercício físico diverso pela casa e às vezes na rua sozinho, outros jogos digitais de cariz bem menos pedagógico, leituras e videos sobre temas políticos ou sociais e, bem de vez em quando, breves sessões de estudo. Ainda não sabe se vai ter que fazer o baccalauréat, pelo que tenta preparar-se para o pior cenário. Verdade seja dita, não é nada fácil manter a motivação sabendo que há uma possibilidade bem real dos exames serem cancelados, ou pelo menos postecipados. Estávamos certos que ia exasperar-se com a clausura, a incerteza dos exames e da entrada na faculdade, a perda de toda a glória e diversão do último ano de liceu...bem pelo contrário tem sido o epíteto da tranquilidade, frustrando-se apenas quando lhe perguntamos como vai ser depois disto. Savoir faire savoir vivre.

O registo diário da Catarina é também razoavelmente constante e sóbrio. Felizmente as aulas de natação mantêm-se à distância, embora fora de água e focadas quase exclusivamente em exercício físico para manter a forma. Todas as competições foram canceladas até final do ano, pelo que o treino colectivo de rotinas para sincronização perdeu relevância. Diz que tem saudades da água e dos treinos a sério, o que nada espanta depois de cinco anos de um ritmo competitivo elevadíssimo e dez a quinze horas por semana dentro de água com a equipa. Tenho alguma curiosidade para saber como isto irá afectar a sua perspectiva sobre continuar os treinos quando nos mudarmos para Portland. O clube que experimentámos em Fevereiro é muito fraco mas há outro muito mais competitivo que talvez a acolha. Para além disso, passa muito tempo no seu quarto em chats com as amigas, micro projectos artísticos pessoais, a ver filmes e séries da netflix e a ler ou reler a sua colecção invejável de romances. Com alguma frequência decide cozinhar bolos ou pão, o que todos agradecemos embora talvez não devêssemos para bem da saúde, e vai dar uma volta de bicicleta aqui pela zona. Tudo isto numa paz suprema, só me lembro de a ouvir queixar-se de tédio uma vez. Ainda me admira como digeriu tão elegantemente o cancelamento de todas as viagens e aventuras fabulosas que tinha em Março e Abril com a escola e a natação. Passou do oitenta para o oito no espaço de duas semanas, comentou esse facto talvez um par de vezes ao jantar, de resto aceitou a situação com o distanciamento de um mestre budista.

Tenho saudades de algumas pessoas. Curiosamente as mesmas de quem já tinha saudades antes. Esta vida de agora não é assim tão diferente da que levávamos pré-covid. Só deixámos de conviver com gente irrelevante. Há muito menos barulho vindo do exterior, contraposto por uma intensidade acrescida na convivência entre nós. Quer queiramos quer não, fazemos praticamente tudo em conjunto. Até as intragáveis chamadas de trabalho e as aulas virtuais passaram a ser partilhadas em família. A certa altura, o Diogo começou a memorizar os nomes dos meus colegas no escritório e já os reconhecia pela voz. Nos períodos mais intensos de decisão, quando as chamadas se extendiam pela noite dentro, a Patrícia já especulava sobre o estado de espírito de alguns membros da minha equipa como se fossem elementos do cast de uma série de televisão. Com essa gente o convívio digital é mais do que suficiente para satisfazer a minha necessidade de contacto. Os filhos acusam-me sempre com ligeireza de anti-socialidade, ao que tipicamente respondo que já passo demasiado tempo com gente. Esta rotina encaixa bem comigo, apenas sinto falta dos ambientes neutros com actividade para observar e a serendipidade das interacções inteligentes para alimentar a reflexão e a criatividade. A nível pessoal, sinto a mesma falta de sempre dos poucos que amo. Esta sociedade na qual escolhemos viver tem sido boa para nós, tem-nos oferecido todas as condições que poderíamos alguma vez desejar para uma vida realizada, excepto no aspecto emocional.

Também nisto do virus, os holandeses tinham à força que ser diferentes dos outros. Não é só com as coffee shops e as meninas nas montras, é um valor cultural e aplica-se a muitas outras áreas da sociedade. Um princípio que muito nos custou assimilar quando nos mudámos para cá há 13 anos foi o da medicina passiva, que consiste na delegação de responsabilidade curativa às competências regenerativas orgânicas e que na prática se traduz na recusa de tratamento até haver sinais manifestos de incapacidade para uma cura autónoma. A lógica é questionável e múltiplas vezes ao longo dos anos optámos por contornar o sistema para obter o tratamento que achámos adequado, mas os aspectos positivos são inegáveis e a Holanda é conhecida mundialmente pela excelência do seu sistema de saúde. De todas as vezes que precisámos de apoio urgente ou mais extenso, nunca no-lo foi negado e a experiência foi fantástica. Com base nesta filosofia de saúde, seria pois de esperar que neste caso também adoptassem uma abordagem particular para a pandemia. Assim foi, como é bem sabido e divulgado, seguida a lógica da imunização em massa, que encaixa perfeitamente no sistema que descrevi mais acima e segue um raciocínio perfeitamente válido a nível puramente intelectual. O problema é que em temas de saúde raramente se pode circunscrever a interacção ao intelecto ou dirigir a atenção unicamente à manifestação localizada da condição. O doente, a quem ironicamente se exige paciência a partir do momento que se insere no sistema, é mais do que um mecanismo que se repara ou substitui. Os números não traduzem o sofrimento de quem se sente desvanecer ou de quem vê partir os seus e que muitas vezes nem tem hipótese de se despedir. Essa dor não tem idade ou condições pré-existentes,

Para todos aqueles que como nós se encontram bem de saúde, a realidade foi alterada apenas de forma ligeira. É certo que estamos em casa com fortes recomendações de comportamento, os restaurantes e bares estão fechados, os cabeleireiros e barbeiros estão fora de serviço, as lojas de bens não essenciais foram todas encerradas mas há muitas excepções à regra. Na nossa zona a maior parte do retalho é considerado essencial e as ruas têm sempre movimento. Os restaurantes estão abertos para take-away, as padarias têm pão fresco todos os dias, até as lojas de álcool e as doçarias continuam de portas abertas com limites de ocupação. Os comportamentos que nos têm sido dados a observar são na generalidade cordatos e respeitadores das indicações de distanciamento. As pessoas formam filas de forma muito tranquila e até respeitam a ordem de chegada, o que vai contra a natureza habitual do holandês. Dentro dos supermercados é um pouco mais complicado pois a impaciência genética manifesta-se na inaceitação do conceito de prioridade, na ansiedade para passar primeiro despachar-se mais depressa daquele ambiente hostil, e na invasão constante do espaço privado de terceiros. Quando o sol brilha, e felizmente isso tem sido regular nas passadas duas semanas, é muito complicado deter as gentes em casa. O governo teve que apertar as regras durante o fim-de-semana para evitar aglomerações nas praias e juntos aos canais. Para os feriados da Páscoa, a coisa foi mais longe e há proibição de viagens de carro nas zonas junto à costa pois esperava-se uma migração da malta da cidade para aproveitar o bom tempo.

Um dos factores que alegadamente mais contribuíu para a difusão descontrolada do virus em Itália e Espanha foi o evento desportivo de massas. Muito concretamente o futebol, que nestes países é o desporto mais popular. De acordo com alguns estudos, apenas um par de jogos da liga dos campeões no princípio da curva disseminou a infecção por dezenas de milhares de pessoas. O mesmo aconteceu no Estados Unidos com jogos de basket em Los Angeles e Nova Iorque. Muita gente sem sintomas mas já contagiante transmitiu a peste aos companheiros de bancada, que a levaram para suas casas e comunidades com os efeitos que hoje se conhece. Todos os jogos com assistência foram banidos, pouco depois todos os eventos desportivos foram proibidos para protecção dos próprios atletas. Confesso que isto me parecia impensável até ter acontecido. Estive em Fevereiro num jogo dos LA Lakers e tudo aquele circo era tangível e absoluto. Tudo o que há uns meses atrás era imperativo perdeu toda a gravidade. Como fenómeno sociológico é fascinante e abre a porta a um mundo de interrogações e reflexões. A fluidez com que todas estas convenções desvaneceram leva a questionar o que mais aí vem. Só aqui que ninguém que nos ouve, também neste mundo do futebol e outros desportos ditos profissionais espero que se encontre um equilíbrio bem mais sustentável. Os clubes tinham um papel activo na vida das comunidades, acolhiam e formavam jovens, promoviam desporto e saúde, uniam famílias e amigos. Hoje transaccionam atletas como se fossem propriedade e degladiam-se em guerras de poder, direitos televisivos e merchandising. Há silêncio nos grandes estádios e pouca falta nos fazem.

Aos poucos, o pânico inicial da contenção dá lugar a cenários de continuidade. Discute-se a resiliência da estrutura sociológica e a capacidade de retorno às antigas dinâmicas sociais. Há quem vaticine alterações permanentes ao modelo operativo dominante, antecipando um estilo de vida mais sustentável e equilibrado. Debate a fundo perdido que apenas reacende velhos ideais e discussões sobre nacionalismos, regionalismos, globalização e outras contradições que tais. A depressão económica parece inevitável, resultado natural da redução do poder de compra dos milhões de desempregados das indústrias do turismo e do retalho. Os pacotes de estímulo monetário apenas podem ajudar à estabilização num cenário de hiato seguido de retoma pujante da actividade. O problema é se a esta paragem se seguirem outras, múltiplas rondas de contenção até chegar a tal vacina salvadora. Cada nova paragem seria um atentado à confiança. Para evitar ondas gigantes com consequência devastadoras, a única estratégia possível é provocar uma série de pequenas vagas entre a população mais resistente para construir a tal imunidade colectiva que minimiza os riscos de contágio. Isso implica isolar os elementos mais vulneráveis, testar continuamente e actuar em tempo real sobre todos os casos detectados. Para as pessoas que se concluir pertencerem a este grupo dos mais frágeis, os próximos tempos vão ser especialmente confusos e assustadores. Será academicamente interessante observar o choque social causado por um regresso ao trabalho dos mais jovens e saudáveis, enquanto tantos outros se mantêm na retaguarda por precaução. 

Para nós, o pós-covid afigura-se enigmático. O nó da faculdade do Diogo não ata nem desata. Andamos nessa caminhada há mais de um ano, sempre um passo à frente e dois atrás. Primeiro as notas da S6 e os exames de candidatura, depois ofertas condicionais às notas da S7, tudo ensombrado pelo impacto do Brexit nas vagas para estrangeiros e nos custos associados. Agora que parecia tudo estar a endireitar-se, vamos ver o que acontece aos diferentes países e às universidades neste novo regime de distanciamento social. Sem saber como se resolve essa questão, não podemos tomar decisões sobre a mudança para Portland. Está quase tudo preparado para partirmos, só falta pôr em  marcha as burocracias que só podem ser concluídas mais em cima do acontecimento. Se formos e houver múltiplas vagas, podemos encontrar-nos impossibilitados de viajar de volta e sabê-lo preso numa sociedade em pânico sem apoio local. A fase de controlo e passes para o lado está a acabar, estamos a entrar no estágio das jogadas profundas que vão decidir o jogo. No trânsito, as intersecções são zonas de oportunidade para ganhar terreno aos que esperam na fila. As crises são as intersecções da vida, momentos em que se pode operar mudanças profundas com implicações de longo prazo. Fortunas e dinastias são geradas e perdidas em momentos de crise. O medo é o pior conselheiro.

Nuno

1.4.20

Nuno e a sua nova função global


Oficialmente acordou hoje: “VP, Workplace Design and Connectivity”. E digo oficialmente porque já está a exercer a função pelo menos desde que voltámos da visita de familiarização a Portland no final de Fevereiro. 


Teve uma bela estreia com este COVID-19, decisões sem precedentes de fechar os escritórios e lojas da Nike, e tudo o que este vírus que veio para nos trocar as voltas tem trazido. Dizem os meninos, e bem, que algumas decisões mundiais da empresa estão a ser tomadas da nossa sala.


Com a função viria a mudança para a sede, nos EUA e o plano era o Nuno ir marcando presença até ao Verão, altura em que o Grandalhão, a Kiks e eu mudaríamos de poiso para Portland. O Diogo a seguir a sua Universidade pela Europa.  O vírus veio-nos alterar ligeiramente os planos.


Por agora, celebremos a saúde de todos em casa, família e amigos. E a nova posição do Nuno. Que seja cheia de experiências enriquecedoras, aventuras e crescimento - e com todos com saúde a volta a apoia. 


Patrícia

A word from the President - ESB magazine April 2020

O texto vinha acompanhado por esta foto

Na semana 3 de confinamento eis o que o Diogo resolve escrever para a sua comunidade escolar.


Fico sempre contente de espreitar a revista e de ler “a word of the president”.


Dá-me muita confiança ver que o Diogo cresceu e se tornou uma pessoa responsável, funcional e autónoma. Acho que, enquanto Mãe, não há melhor realização de tarefa cumprida.


Patricia