“Chegadas
São como os mil pedaços de algo que se estilhaçou, uma jarra talvez. De repente, como nas imagens filmadas, voltam para trás, fazem todo o caminho até ao momento em que a jarra ainda estava inteira, sem imaginar que se poderia partir.
Se houvesse uma linha traçada entre eles e o objecto dos seus pensamentos, esse desenho de rectas acertaria muitas vezes neste ponto, Portugal. E, na verdade, essas linhas existem. São invisíveis, mas existem. Nem só aquilo que se vê é real e concreto. Como chegaram eles tão longe, a lugares de cores e temperaturas tão diferentes? Cada indivíduo tem o seu próprio rasto. Existe a história de Portugal, cronologia de séculos e dinastias, e existe a história de cada português. Raízes, troncos, ramos a estenderem-se na direcção de algo, mãos a quererem agarrar.
Agora eles fazem o caminho de volta. Trazem as malas cheias. E, porque nem só aquilo que se vê é real e concreto, repito-me, trazem malas imateriais também cheias. Não foi necessario pesá-las, despachá-las no check in, mas são tão necessárias como as outras e, mal aterrem, os seus portadores encontrarão maneira de abri-las, com ou sem código, com ou sem cadeado, e de distribuir o melhor do seu conteúdo por aqueles que ficaram, que os esperam.
Também por isto, este preciso momento é fascinante. Para além daqueles que regressam, há aqueles que seguem essa viagem mentalmente, olhando para o relógio na televisão, no pulso, no telemóvel, e imaginando a distância a que o outro estará, o tempo que falta para que aterre e sem encontrem. Também eles fazem uma viagem, paralela a tudo o que os rodeia, têm sentidos que são capazes de evocar um caminho.
A verdadeira chegada acontecerá no momento do encontro. Quando atravessarem a porta da saída, nada a declarar, e, de repente, se tornarem estrelas num palco com dezenas de pessoas a olharem para eles; ou apenas depois de um táxi, de vários transportes, depois de se reconhecer com surpresa as pequenas mudanças das estradas, das ruas, dos cartazes de publicidade, do céu. No entanto, aquilo que é certo, completamente garantido, é que a chegada acontecerá. Num abraço, todos os quilómetros serão reduzidos a nada. Aqueles que esperam irãao abraçar aqueles que regressam, que fazem esta viagem sobrevoando fronteiras e milhares de vidas.
Por isso, é importante acalmar a voz que repete por dentro: quanto tempo falta para chegarmos? Ė agora importante que se respire longamente. Este tempo é solene. A reunião está marcada. Já foi dado início a todos os movimentos que a vão provocar. O encontro é inevitável. Por isso, de certa forma, é como se já estivesse a acontecer. E está.
A linha entre nós e o objecto dos nossos pensamentos está traçada. Não me arrependo de repetir, nem só aquilo que se vê é real e concreto. Seria uma pena deixar passar este momento sem que fosse desfrutado. Como diante de uma paisagem, aquilo que se abre à nossa frente é enorme. Do alto deste instante, temos a certeza inquebrável de que nunca nada nos poderá separar.
José Luís Peixoto”
Este texto do autor estava na revista de viagem. Gostei dele e retive-o. Por sentir verdade para nós, emigrantes, que regressamos e, assumo, para aqueles que nos esperam. Todavia, ao lê-lo, vem também uma profunda tristeza, por saber que não é uma verdade absoluta. Não é porque há também os que partem, e não podem regressar mais. Com esses o encontro fica, para sempre, condenado.
Os que emigram levem na bagagem imaterial este peso enorme do medo do não reencontro. Quando se despedem ocorre, será a ultima vez que te beijo?
Assim foi com a minha avó. Despedi-me dela, em Agosto 2013, no dia antes de partir. Fomos até sua casa e desafiámo-la a ir comer um gelado à Itália, na Avenida da Igreja. Tranquilamente fomos. Tranquilamente saboreámos, na esplanada, sob o calor de Agosto, o gelado. E regressámos. E me despedi, sem pensar que seria a última vez que a veria animada.
Voltei a vê-la envolta de flores – muitas, como teria merecido em vida - também tranquila, mas fria e inanimada.
Partiu a 28 de Novembro de 2013. Trouxe um vazio em forma de Carlota ao Natal. À família. Lembro muito as suas mãos a apertarem as minhas. Um gesto muito seu, muito firme e quente e de contacto. Não sei porquê mas as mãos vêem-me constantemente à memória. E a voz, contente, a dizer “Patrícia!!”, quando ligava. 85 anos, certo, deveria ser de esperar. Mas não era. Não ela.
Agora repousa ao sol, como em vida gostava de estar.
Tenho saudades tuas avó. Descansa em paz.
Patrícia